quinta-feira, novembro 07, 2019

Quinta,7.
Ainda o padre Malagrida. Era um visionário, um místico, convencido que possuía predestinação para o martírio e só tinha prazer espiritual em situações limite. Desembarca em Lisboa 1749, no rescaldo de um naufrágio de que escapou por milagre. Trazia consigo uma imagem da Virgem milagrosa e dizia que foi graças a ela que o navio pôde entrar a Barra, num dia de temporal assustador. Assim que pôs os pés em terra, foi visitar D. João V que estava muito mal de saúde. O rei vendo-o entrar, pediu aos seus validos que o ajudassem a ajoelhar, e suplicou ao santo homem as suas preces. Em agradecimento Malagrida obteve tudo o que queria do soberano e em troca deu-lhe a imagem que trouxera consigo e acreditava ser graças a ela que se havia salvado. A partir dali toda a corte quis aproximar-se do bondoso padre, provavelmente porque tinham a consciência atulhada de pecados devido a vida dissoluta que na corte reinava a começar por D. João V. Tinham até, como direi, satisfação nas penitências que Malagrida lhes impunha, e em breve desde a rainha Maria Ana de Áustria à esposa de Sebastião José de Carvalho, Leonor Daun, chegada à corte, cumpriam religiosamente os seus deveres religiosos impostos pelo missionário um pouco esgrouviado. Depressa Lisboa inteira rendera-se ao seu encanto destravado, particularmente o povo, em primeiro as mulheres que lhe chamavam “santo Malagrida”.

Esteve por cá cerca de dois anos e dizia-se que o rei lhe morreu nos braços, assistiu à aclamação de D. José, à nomeação do marquês de Pombal para secretário dos Negócios Estrangeiros. Impaciente, sempre em movimento, Gabriel Malagrida, retorna ao Brasil ignorando a suplica da rainha que voltasse rápido para a preparar para os últimos momentos como sucedera com o marido. Mário Domingues e Camilo Castelo Branco que também se interessaram pelo original sacerdote, têm praticamente as mesmas impressões sobre a personalidade do jesuíta fora do baralho se me é permitido exprimir-se assim.       

Chegado a Terras de Santa Cruz, logo meteu pés ao caminho e mãos à obra para pôr de pé o Colégio de Jesuítas do Pará. D. João V tinha falecido e os apoios aos jesuítas como em menor número a outras ordens religiosas, tinham mudado. Malagrita, qual bicho carpinteiro, parecia não se aperceber disso. Está com 63 anos e não podendo edificar o seu sonho, mete ombros a outras empresas, colégios e assim, bate à porta deste e daquele mendigando o dinheiro necessário para as obras, pouco lhe interessando se fora conseguido com trabalho ou negócios obscuros. Ele próprio faz de pedreiro, acarreta pedra, numa energia que ninguém sabia aonde a ia buscar. Entretanto, chegam notícias do estado final da rainha e ele decide embarcar in petto de novo para Lisboa, lembrando-se do que lhe havia pedido a soberana. Para traz ficaram acabados um recolhimento, seminários, conventos, refúgios e restauradas oito igrejas. Só Sebastião de Carvalho temia o retorno do endiabrado padre, porque as suas relações com a Companhia dos Jesuítas iam de mal a pior. Mas sobretudo, temia a sua influência no Paço Real. A rainha mãe voltou a apoiar-se nele e o povo nas ruas gritava pelo seu nome. Os notáveis da sua Ordem, não o suportavam nem acreditavam nos seus dons milagreiros. Tinham, pura e simplesmente, inveja do poder que Malagrida alcançara junto da soberana e do povo. A tal ponto que o antagonismo entre ele e o futuro duque de Pombal não autorizou que o bom padre entrasse nos aposentos onde a rainha Maria Ana agonizava. Aquele Malagrida que voltou do Brasil, já não tinha a aparência que ajudara à legenda:  cabeleira loira e a barba alva, ar de louco varrido quando pregava.  A sua saúde também se deteriorara, a pregação era mais escassa, ainda assim quando pregava em Setúbal, a meio do sermão, anunciou a morte de rainha. Mais tarde soube-se que falecera no dia e na hora antevistos pelo sacerdote. Este facto adensou ainda mais a ideia de santo, de milagreiro. O seu fim – dizia-se – estava por um fio. Malagrida era uma sombra daquele outro antes de embarcar.

Eis que se dá o terramoto de 1755. Gabriel Malagrida entra em cena, rejuvenesce, aquele é o clima que convém à sua natureza em estado quase selvagem. Despacha-se para as ruas, passa nelas dias e noites inteiras, sem ir à cama, ajudando a enterrar os mortos, a cuidar dos vivos, a apagar os muitos fogos que consumiam a cidade, a pregar no meio das ruinas, terror e pânico correndo a cidade de lés-a-lés, a consolar as viúvas, a levar a palavra do Senhor que o obscurantismo da época dizia ter sido a vingança de Deus. Por isso todas as orações e novenas eram poucas, de outro modo outros terramotos viriam para punição de tanta malvadez, de tantos infiéis. Tudo num tom alterado, sinistro, de fim do mundo. Os primeiros a verem nas suas preces alarmistas e proféticas, foram os notáveis da Companhia de Jesus que sempre o olharam de lado. O padre Malagrida servia agora às mil maravilhas os intentos dos poderosos da Companhia que daí tiravam os respectivos proveitos políticos, sobretudo contra Sebastião José que esperava o momento para correr com eles da pátria. Nesse jogo, Malagrita não entrava, estava noutra, era um obcecado da palavra do Evangelho e não se dava conta da moeda de troca em que o transformaram. O eclesiástico estava de novo na moda e até o infante D. Pedro e outros fidalgos lhe solicitavam que intercedesse por eles ao Criador. Bem podia o futuro marquês de Pombal gritar que o que aconteceu foi um fenómeno da natureza, estavam todos – povo, Igreja,  nobreza, Santo Ofício – cada qual com os seus interesses e argumentos, do lado de Malagrida. Nos tempos liderados pelos jesuítas, Malagrida que deles fazia parte, perguntava: “Haverá, não digo católico, mas herege, turco ou judeu, que possa dizer que este tão grande açoite foi puro efeito de causas naturais, e não fulminado especialmente por Deus, pelos nossos pecados?” (Abro parênteses, para dizer que esta mentalidade soturna, manipulada, durou até ao Estado Novo. Deus é transformado por obra dos interesses da Igreja e da política vigente, num Lúcifer de quem ninguém escapa sem ser atirado para as profundezas do inferno.) A corte comungava destas barbaridades, o povo analfabeto seguia-lhe os passos, só o ministro Sebastião de Carvalho e Melo remava no mesmo sentido da Europa por essa altura já avançada nas ciências sociais e físicas. Malagrida foi ao ponto de publicar um folheto onde afirmava as suas visões, dizia que ouvia vozes do céu, que estava em sintonia com o Altíssimo. Aí Sebastião José de Carvalho e Melo perde a cabeça e dirigiu-se ao núncio Acciajuoli reclamando o exílio do pobre alucinado. Gabriel Malagrida foi desterrado para Setúbal. Vem a morrer nas condições que descrevi antes (sábado, 26 de Outubro). Para mim é uma personalidade fascinante, um destrambelhado que marcou o século XVIII. Um século paradoxal, governado por um rei, D. João V, e pelo filho D. José I, figuras tristes, com vidas devassas, mulheres de toda a sorte, fascinados pelo fausto, as festas para impressionar, os gastos de aparato criminosos, milhares de reais oferecidos às ordens religiosas, especialmente à companhia de Jesus, que construiu escolas, conventos, igrejas com o dinheiro que D. João V lhes dava. O rei estava nitidamente nas mãos dos jesuítas e dos dominicanos. Estes, apoiados pelo Santo Ofício reconhecido por Roma, queimaram seres humanos vivos, desmantelaram os seus corpos, arrastaram-nos pelas ruas de Lisboa, chamavam-lhes hereges porque pensavam diferente. Ainda hoje Portugal tem as vozes desse desumano sofrimento só comparado ao de Jesus Cristo na cruz, a clamar misericórdia e justiça por todo o lado. Eu não entro na Capela dos Ossos, em Évora, sem sentir não só revolta como vontade de defender todos os que ainda hoje olham a Igreja como uma organização de malfeitores ao serviço de Satanás e não do grande Perdoador. A Igreja ao longo dos séculos tratou dos seus interesses terrenos e muito pouco dos espirituais, ofendeu Deus e os homens. Foi contra a obsessão do poder e a intriga permanente dos discípulos de Loiola que Blaise Pascal combateu e o Marquês de Pombal lhes tinha um ódio de morte.

         - As 1400 páginas do outro Green que a miúdo folheio, instalam em mim esta interrogação: porque raio o escritor, cinquenta depois de serem escritas e pos mortem, quis que os seus leitores conhecessem o lodaçal de vida que foi a sua, ele que havia construído uma imagem quase de santo e de grande escritor que, de resto, não deixa de ser, pese embora a existência dissoluta e a mentira que encheu os seus 98 anos de demora neste mundo?


         - Hoje, no longo passeio pedestre por Saint Germain e Saint-Michel, sob um sol tímido que surgiu a romper os dias sombrios desde o início da semana, o frio desceu a par do vento rasteiro que nos enregelava os ossos. Aconchegado na alegria de me ver aqui, pendurado dos pensamentos que sincopavam os meus passos, deambulei por todo o lado em busca dos meus autores. Amanhã parto para Strasbourg onde conto ficar até terça-feira.