Quinta,7.
Ainda o padre Malagrida. Era um
visionário, um místico, convencido que possuía predestinação para o martírio e
só tinha prazer espiritual em situações limite. Desembarca em Lisboa 1749, no
rescaldo de um naufrágio de que escapou por milagre. Trazia consigo uma imagem
da Virgem milagrosa e dizia que foi graças a ela que o navio pôde entrar a
Barra, num dia de temporal assustador. Assim que pôs os pés em terra, foi
visitar D. João V que estava muito mal de saúde. O rei vendo-o entrar, pediu
aos seus validos que o ajudassem a ajoelhar, e suplicou ao santo homem as suas
preces. Em agradecimento Malagrida obteve tudo o que queria do soberano e em
troca deu-lhe a imagem que trouxera consigo e acreditava ser graças a ela que
se havia salvado. A partir dali toda a corte quis aproximar-se do bondoso
padre, provavelmente porque tinham a consciência atulhada de pecados devido a
vida dissoluta que na corte reinava a começar por D. João V. Tinham até, como
direi, satisfação nas penitências que Malagrida lhes impunha, e em breve desde a
rainha Maria Ana de Áustria à esposa de Sebastião José de Carvalho, Leonor Daun,
chegada à corte, cumpriam religiosamente os seus deveres religiosos impostos
pelo missionário um pouco esgrouviado. Depressa Lisboa inteira rendera-se ao
seu encanto destravado, particularmente o povo, em primeiro as mulheres que lhe
chamavam “santo Malagrida”.
Esteve por cá cerca de dois anos e
dizia-se que o rei lhe morreu nos braços, assistiu à aclamação de D. José, à
nomeação do marquês de Pombal para secretário dos Negócios Estrangeiros.
Impaciente, sempre em movimento, Gabriel Malagrida, retorna ao Brasil ignorando
a suplica da rainha que voltasse rápido para a preparar para os últimos
momentos como sucedera com o marido. Mário Domingues e Camilo Castelo Branco
que também se interessaram pelo original sacerdote, têm praticamente as mesmas
impressões sobre a personalidade do jesuíta fora do baralho se me é permitido
exprimir-se assim.
Chegado a Terras de Santa Cruz, logo
meteu pés ao caminho e mãos à obra para pôr de pé o Colégio de Jesuítas do
Pará. D. João V tinha falecido e os apoios aos jesuítas como em menor número a
outras ordens religiosas, tinham mudado. Malagrita, qual bicho carpinteiro,
parecia não se aperceber disso. Está com 63 anos e não podendo edificar o seu
sonho, mete ombros a outras empresas, colégios e assim, bate à porta deste e
daquele mendigando o dinheiro necessário para as obras, pouco lhe interessando
se fora conseguido com trabalho ou negócios obscuros. Ele próprio faz de
pedreiro, acarreta pedra, numa energia que ninguém sabia aonde a ia buscar.
Entretanto, chegam notícias do estado final da rainha e ele decide embarcar in petto de novo para Lisboa,
lembrando-se do que lhe havia pedido a soberana. Para traz ficaram acabados um
recolhimento, seminários, conventos, refúgios e restauradas oito igrejas. Só
Sebastião de Carvalho temia o retorno do endiabrado padre, porque as suas
relações com a Companhia dos Jesuítas iam de mal a pior. Mas sobretudo, temia a
sua influência no Paço Real. A rainha mãe voltou a apoiar-se nele e o povo nas
ruas gritava pelo seu nome. Os notáveis da sua Ordem, não o suportavam nem
acreditavam nos seus dons milagreiros. Tinham, pura e simplesmente, inveja do
poder que Malagrida alcançara junto da soberana e do povo. A tal ponto que o
antagonismo entre ele e o futuro duque de Pombal não autorizou que o bom padre entrasse
nos aposentos onde a rainha Maria Ana agonizava. Aquele Malagrida que voltou do
Brasil, já não tinha a aparência que ajudara à legenda: cabeleira loira e a barba alva, ar de louco
varrido quando pregava. A sua saúde
também se deteriorara, a pregação era mais escassa, ainda assim quando pregava
em Setúbal, a meio do sermão, anunciou a morte de rainha. Mais tarde soube-se
que falecera no dia e na hora antevistos pelo sacerdote. Este facto adensou
ainda mais a ideia de santo, de milagreiro. O seu fim – dizia-se – estava por
um fio. Malagrida era uma sombra daquele outro antes de embarcar.
Eis que se dá o terramoto de 1755. Gabriel
Malagrida entra em cena, rejuvenesce, aquele é o clima que convém à sua
natureza em estado quase selvagem. Despacha-se para as ruas, passa nelas dias e
noites inteiras, sem ir à cama, ajudando a enterrar os mortos, a cuidar dos
vivos, a apagar os muitos fogos que consumiam a cidade, a pregar no meio das ruinas,
terror e pânico correndo a cidade de lés-a-lés, a consolar as viúvas, a levar a
palavra do Senhor que o obscurantismo da época dizia ter sido a vingança de
Deus. Por isso todas as orações e novenas eram poucas, de outro modo outros
terramotos viriam para punição de tanta malvadez, de tantos infiéis. Tudo num
tom alterado, sinistro, de fim do mundo. Os primeiros a verem nas suas preces
alarmistas e proféticas, foram os notáveis da Companhia de Jesus que sempre o
olharam de lado. O padre Malagrida servia agora às mil maravilhas os intentos
dos poderosos da Companhia que daí tiravam os respectivos proveitos políticos,
sobretudo contra Sebastião José que esperava o momento para correr com eles da
pátria. Nesse jogo, Malagrita não entrava, estava noutra, era um obcecado da
palavra do Evangelho e não se dava conta da moeda de troca em que o
transformaram. O eclesiástico estava de novo na moda e até o infante D. Pedro e
outros fidalgos lhe solicitavam que intercedesse por eles ao Criador. Bem podia
o futuro marquês de Pombal gritar que o que aconteceu foi um fenómeno da
natureza, estavam todos – povo, Igreja,
nobreza, Santo Ofício – cada qual com os seus interesses e argumentos,
do lado de Malagrida. Nos tempos liderados pelos jesuítas, Malagrida que deles
fazia parte, perguntava: “Haverá, não digo católico, mas herege, turco ou
judeu, que possa dizer que este tão grande açoite foi puro efeito de causas
naturais, e não fulminado especialmente por Deus, pelos nossos pecados?” (Abro
parênteses, para dizer que esta mentalidade soturna, manipulada, durou até ao
Estado Novo. Deus é transformado por obra dos interesses da Igreja e da
política vigente, num Lúcifer de quem ninguém escapa sem ser atirado para as
profundezas do inferno.) A corte comungava destas barbaridades, o povo
analfabeto seguia-lhe os passos, só o ministro Sebastião de Carvalho e Melo
remava no mesmo sentido da Europa por essa altura já avançada nas ciências
sociais e físicas. Malagrida foi ao ponto de publicar um folheto onde afirmava
as suas visões, dizia que ouvia vozes do céu, que estava em sintonia com o
Altíssimo. Aí Sebastião José de Carvalho e Melo perde a cabeça e dirigiu-se ao
núncio Acciajuoli reclamando o exílio do pobre alucinado. Gabriel Malagrida foi
desterrado para Setúbal. Vem a morrer nas condições que descrevi antes (sábado,
26 de Outubro). Para mim é uma personalidade fascinante, um destrambelhado que
marcou o século XVIII. Um século paradoxal, governado por um rei, D. João V, e
pelo filho D. José I, figuras tristes, com vidas devassas, mulheres de toda a
sorte, fascinados pelo fausto, as festas para impressionar, os gastos de
aparato criminosos, milhares de reais oferecidos às ordens religiosas,
especialmente à companhia de Jesus, que construiu escolas, conventos, igrejas
com o dinheiro que D. João V lhes dava. O rei estava nitidamente nas mãos dos
jesuítas e dos dominicanos. Estes, apoiados pelo Santo Ofício reconhecido por
Roma, queimaram seres humanos vivos, desmantelaram os seus corpos, arrastaram-nos
pelas ruas de Lisboa, chamavam-lhes hereges porque pensavam diferente. Ainda
hoje Portugal tem as vozes desse desumano sofrimento só comparado ao de Jesus Cristo
na cruz, a clamar misericórdia e justiça por todo o lado. Eu não entro na
Capela dos Ossos, em Évora, sem sentir não só revolta como vontade de defender todos
os que ainda hoje olham a Igreja como uma organização de malfeitores ao serviço
de Satanás e não do grande Perdoador. A Igreja ao longo dos séculos tratou dos
seus interesses terrenos e muito pouco dos espirituais, ofendeu Deus e os
homens. Foi contra a obsessão do poder e a intriga permanente dos discípulos de
Loiola que Blaise Pascal combateu e o Marquês de Pombal lhes tinha um ódio de
morte.
- As 1400 páginas do outro Green que a miúdo folheio, instalam em mim
esta interrogação: porque raio o escritor, cinquenta depois de serem escritas e
pos mortem, quis que os seus leitores
conhecessem o lodaçal de vida que foi a sua, ele que havia construído uma
imagem quase de santo e de grande escritor que, de resto, não deixa de ser,
pese embora a existência dissoluta e a mentira que encheu os seus 98 anos de demora
neste mundo?
- Hoje, no longo passeio pedestre por Saint Germain e Saint-Michel, sob
um sol tímido que surgiu a romper os dias sombrios desde o início da semana, o
frio desceu a par do vento rasteiro que nos enregelava os ossos. Aconchegado na
alegria de me ver aqui, pendurado dos pensamentos que sincopavam os meus
passos, deambulei por todo o lado em busca dos meus autores. Amanhã parto para
Strasbourg onde conto ficar até terça-feira.