quarta-feira, novembro 27, 2019

Quarta, 27.
Constato que este ano pouca ou nenhuma atenção prestei ao que se passa no meu país, como não fiz as leituras diárias de outros anos ou mesmo a confecção de um prato lusitano para os que me hospedam ou o envio de duas palavras aos amigos e familiares na forma de um postal. Apesar de ter esta mesa onde trabalho apinhada de livros que fui comprando, entreguei-me de corpo e alma ao romance que me consumiu os dias. Embora hoje me sinta mais aliviado, ronda-me já a saudade dos meus amigos com quem convivi dois anos a fio: Flávio Jardim, Rui Gonçalves, Bibilindo, Rita, Maria Teresa, Bonifácio, Crispim, Pimentel da Gaia, Patrício, Florbela, Masfondo, Fifi, Jojó, Fafá e tutti quanti. É sempre assim quando termino um trabalho. Que se passará com os outros, esses que fazem livros como o padeiro pão quente?
                              
         - Sentado num café defronte da abadia de Cluny, num fim de tarde chuvoso e triste, mordido de pensamentos estranhos, mistura melancólica do tempo que deixou de me pertencer, ou para utilizar a expressão feliz de Arthur Schnitzler “vivemos só para envelhecer. Tudo o resto, não passa de aventuras”, fui-me afundando nas fragas das horas. Quando voltei a mim, a noite derramara-se no jardim medieval e nenhum ou poucos visitantes saíam do velho edifício. Morrer ali, no completo anonimato ou na China do ditador ou em Palmela com os olhos nas árvores minhas ternas companheiras, parecia-me indiferente posto que morremos sempre sós e a passagem para o invisível fazemo-la deixando para trás as fantasias e estados de alma, ódios e instantes de graça.

         - Aquela criatura que entrou na malfadada linha 13 do metro esta tarde, toda vestida de negro da cabeça aos pés, empurrando os passageiros que seguiam à cunha na carruagem onde eu me encontrava, pedindo esmola em árabe. Só percebi a palavra Alá, o Profeta. Mesmo que falasse em chinês, a expressão e os gestos dos pobres são os mesmos em todas as línguas.

         - Numa ronda pelas livrarias, deparei com o último volume do Diário de Gabriel Matzneff L´amante de l´Arsenal (2016-2018) acabado de sair. Não o comprei porque já tenho que ler para o próximo ano inteiro.

         - Um dos canais de televisão apresentou um documentário seguido de mesa redonda sobre os métodos do ditador da China para controlar os milhões de cidadãos. Atroz. Servindo-se das modernas tecnologias, criou uma pura prisão ao ar livre, que lhe permite, por pontos, vigiar os cidadãos em qualquer parte, a qualquer hora. Uma falta, por minúscula que seja, faz o indivíduo descer ao nível de zero pontos, significando que perde o direito a assistência social, por exemplo. Tudo, o bom e o mau, fica registado. Não me espantaria que começasse na China de Xi Jinping ping ping a introdução de um chip sob a pele do recém-nascido (como já se faz com gatos e cães) para acumulação da informação necessária ao ditador e de seguida a todos os tiranos que por aí espreitam impor-se.


         - Protesto dos agricultores que para o efeito cercaram estradas de acesso a Paris. Exigem do Governo medidas que retire os lucros excessivos a supermercados e distribuidoras, deixando quase na completa miséria os que trabalham a terra. Claro que Chou Chou não irá fazer nada a favor dos escravos agrícolas. Ele pertence ao sector que os explora até à fome. Macron foi a grande desilusão da França. A mim nunca ele me enganou. Do seu reinado não restará nada que os franceses lhe agradeçam. É tão medíocre e, sobretudo, oportunista como o seu antecessor. Arrasou a esquerda para deixar a direita crescer. Até Annie e Robert que votaram nele, se mostram frustrados.