Quarta, 27.
Constato que este ano pouca ou nenhuma
atenção prestei ao que se passa no meu país, como não fiz as leituras diárias
de outros anos ou mesmo a confecção de um prato lusitano para os que me
hospedam ou o envio de duas palavras aos amigos e familiares na forma de um
postal. Apesar de ter esta mesa onde trabalho apinhada de livros que fui
comprando, entreguei-me de corpo e alma ao romance que me consumiu os dias.
Embora hoje me sinta mais aliviado, ronda-me já a saudade dos meus amigos com
quem convivi dois anos a fio: Flávio Jardim, Rui Gonçalves, Bibilindo, Rita,
Maria Teresa, Bonifácio, Crispim, Pimentel da Gaia, Patrício, Florbela,
Masfondo, Fifi, Jojó, Fafá e tutti
quanti. É sempre assim quando termino um trabalho. Que se passará com os
outros, esses que fazem livros como o padeiro pão quente?
- Sentado num café defronte da abadia de Cluny, num fim de tarde chuvoso
e triste, mordido de pensamentos estranhos, mistura melancólica do tempo que
deixou de me pertencer, ou para utilizar a expressão feliz de Arthur Schnitzler
“vivemos só para envelhecer. Tudo o resto, não passa de aventuras”, fui-me afundando
nas fragas das horas. Quando voltei a mim, a noite derramara-se no jardim medieval
e nenhum ou poucos visitantes saíam do velho edifício. Morrer ali, no completo
anonimato ou na China do ditador ou em Palmela com os olhos nas árvores minhas
ternas companheiras, parecia-me indiferente posto que morremos sempre sós e a
passagem para o invisível fazemo-la deixando para trás as fantasias e estados
de alma, ódios e instantes de graça.
- Aquela criatura que entrou na malfadada linha 13 do metro esta tarde,
toda vestida de negro da cabeça aos pés, empurrando os passageiros que seguiam
à cunha na carruagem onde eu me encontrava, pedindo esmola em árabe. Só percebi
a palavra Alá, o Profeta. Mesmo que falasse em chinês, a expressão e os gestos dos
pobres são os mesmos em todas as línguas.
- Numa ronda pelas livrarias, deparei com o último volume do Diário de
Gabriel Matzneff L´amante de l´Arsenal
(2016-2018) acabado de sair. Não o
comprei porque já tenho que ler para o próximo ano inteiro.
- Um dos canais de televisão apresentou um documentário seguido de mesa
redonda sobre os métodos do ditador da China para controlar os milhões de cidadãos.
Atroz. Servindo-se das modernas tecnologias, criou uma pura prisão ao ar livre,
que lhe permite, por pontos, vigiar os cidadãos em qualquer parte, a qualquer
hora. Uma falta, por minúscula que seja, faz o indivíduo descer ao nível de zero
pontos, significando que perde o direito a assistência social, por exemplo.
Tudo, o bom e o mau, fica registado. Não me espantaria que começasse na China
de Xi Jinping ping ping a introdução de um chip sob a pele do recém-nascido (como
já se faz com gatos e cães) para acumulação da informação necessária ao ditador
e de seguida a todos os tiranos que por aí espreitam impor-se.
- Protesto dos agricultores que para o efeito cercaram estradas de acesso
a Paris. Exigem do Governo medidas que retire os lucros excessivos a
supermercados e distribuidoras, deixando quase na completa miséria os que trabalham
a terra. Claro que Chou Chou não irá fazer nada a favor dos escravos agrícolas.
Ele pertence ao sector que os explora até à fome. Macron foi a grande desilusão
da França. A mim nunca ele me enganou. Do seu reinado não restará nada que os
franceses lhe agradeçam. É tão medíocre e, sobretudo, oportunista como o seu
antecessor. Arrasou a esquerda para deixar a direita crescer. Até Annie e
Robert que votaram nele, se mostram frustrados.