sábado, novembro 09, 2019

Sexta, 8.
Outro dia, quando esperava em Charles De Gaulle que Robert viesse buscar-me, sob um frio cortante, assisti à dança dos táxis e das motos-táxi. Trata-se de potentes BMW que trazem o cliente de capacete, blusão e uma pequena cobertura nos joelhos em couro forrado a lã. Sentado na parte de traz, com os rins apoiados a uma saliência, assim que chega ao aeroporto, o condutor retira-lhe a protecção dos joelhos, o casaco e por fim o capacete, que guarda na caixa na parte de trás do veiculo sem que antes retire os haveres do freguês e a mala que viajou presa a um estrado na suas costas. Prático, rápido, moderno e a um preço muitíssimo mais barato que um carro. Comparando as distâncias entre Palmela e o aeroporto de Lisboa, constatei que era vinte por cento menos que eu pago quando chamo um táxi.
                                                    
         - Na véspera de sair, trabalhei no Epílogo do romance nove cheias horas. Uma obsessão que me custou caro, pois o sistema nervoso cedeu e tive de enfiar dois Valdispert para acalmar. Agora, aqui, resta-me encontrar espaço para fazer a terceira e última revisão, cujo calendário fixei em 10 páginas/dia. A verdade é que ainda não consegui começar a cumprir o programa e já lá vai uma semana.

         - A grande culpada é Paris. Claro que os amigos preenchem uma boa parte dos meus dias, mas são os livros, os museus, que os devoram. Outro dia, chez Gibert Joseph, Boulevard Saint Michel, nos seus quatro andares, olhando as estantes alinhadas por autores e temas, exclamei: “C´est pas possible!” Duma assentada, vi uns quantos volumes que me tentaram e com avidez folheei. Se vivesse aqui, os meus dez mil exemplares de Palmela, duplicariam. Roubaria ao estômago para dar à alma e ao espírito o alimento fundamental à sua e minha existência. E não haveria nenhum dia que retornasse a casa sem a companhia de novos amigos. 

         - O frio instalou-se. Felizmente que o tempo moche dos últimos dias, deu lugar a um sol fraco e sem brilho, todavia resplandecente. Flanar ao acaso pelas ruas e avenidas, é aprisionarmo-nos da atmosfera contagiante de história que se solta de cada fachada, de cada igreja, de cada monumento, rua ou beco, jardim ou passagem coberta com seus ornatos do XVIII ou XIX séculos. É também ficar horas esquecidas nos terraços dos cafés, olhando as águas do Sena onde se reflectem os monumentos-instituições que o ladeiam, é escutar os franceses e o seu eterno descontentamento, o seu espírito critico, o seu modo gauche de ver a vida. É deliciarmo-nos com o movimento incessante de gentes de todo o mundo atravessando as ruas às ordens dos semáforos, do caudal do trânsito, cobertas dos pés à cabeça, os rostos assomando por entre as ranhuras dos agasalhos como fantoches sem expressão. É respirar o ar poluído, injectado do aroma cultural que apesar de tudo permanece, volteado nas Fábulas de la Fontaine, ou no humor de Molière...


         - Strasbourg. Sou recebido como um rei. Lionel ofereceu-me a sua maravilhosa casa, cheia recantos e alegria dos dois filhos, uma rapariga e um rapaz. Estão menos 2 graus, mas aqui o conforto expande-se em amizade e ternura. O quarto que me foi reservado, no primeiro andar da vasta vivenda, é todo em madeira clara, acolhedor, pleno de livros. Que mais quero eu depois de uma viagem esgotante de seis horas?