quinta-feira, novembro 26, 2015

Quinta, 26.
Ontem fomos de visita a Quimper antigo condado da Cornualha. Como sempre por estas paragens chuva e sol casam-se para nos chatear ou lançar súbitos sorrisos provocadores. Foi assim durante toda a viagem de hora e meia para cada lado. Chegados à cidade, todas as provocações iniciais desaparecem ante o vigor que se vê por toda a banda. Quimper é a cidade da juventude, ela está airosa e impertinente por todo o lado, a tal ponto que temos de pregar os olhos no chão de forma a não termos terríveis abalos de coração... Descidos do carro, o olhar aponta as flechas da catedral e com os olhos nelas, avançamos ao seu encontro por ruas e casas com séculos, praças e becos onde o tempo petrificou num espanto ou numa carícia banhada da ternura que a idade possui em abundância. Entre raios de sol e pequenas incursões de chuva miúda, flanámos por aqui e por acolá, deixando os sentidos andarilhar cada espaço, extasiar ante uma velha carcaça bem cuidada, onde por detrás das cortinas avistamos uma luz e uma sombra, um ruído fino trespassado do mistério que se esconde nas horas, murmúrio ciciado, quase um golpe de dor, um suspiro, um desmaio, uma recordação caída no fundo do tempo...  

         - Antes de despertarmos das emoções da chegada, sendo tarde, entrámos numa velha creperie drapejada de história, onde nos sentámos diante de um fogo de lenha, na mesa corrida do canto da sala. Fizemos um almoço inteiramente com crepes - ovos, peixes, doces – regados com uma excelente sidra, a melhor de todas as que bebi, indiferentes às horas que, desprezando-nos, prosseguiam o seu caminho para... Deixámos o agradável restaurante para nos salpicarmos de uma chuva de doidos, por ruas festivas adornadas de fachadas de todas a cores, nas traves de madeira que as embelezam à moda germânica, de resto, persiste no ar a par de uma atitude céltica que se vê por todo o lado. O amplo centro é uma joia conservada pelo tempo e pela inteligência humana. Vários séculos acumulam-se nas pedras, nas personagens que as decoram, no rigor do traço arquitectónico, na sua geometria à escala humana. Ali ninguém morreu definitivamente. Pelo contrário, os mortos mantêm um diálogo permanente com os vivos, vigiando-os, orientando-os na conservação e manutenção do seu legado.

         - Entrámos na catedral de S. Corentin e somos recebidos pela imponente nave central, que curva ligeiramente para esquerda até ao altar, tudo majestoso e sólido, que recebe a pouca luz espaçada do exterior através dos vitrais de uma beleza comovente. Gótica no belo exemplar destas paragens, imponente como a desejou no século XV o seu bispo, respira-se dentro dela os alvores de outros tempos, quando a Igreja rica e prepotente, dispunha dos fiéis segundo regras estritamente pessoais e muitas vezes arbitrárias. Uma grande tela, mostra o padre Maunoir recebendo do anjo suspenso das alturas, tocando a língua do sacerdote com um dedo delicado e gracioso - segundo a lenda nasceu então o bretão como expressão linguística.





         - Mais tarde visitámos o Museu das Belas Artes. Espaçoso para uma cidade do Finisterra, cuidado e simples, com espaço folgado para o visitante admirar o rés-do-chão consagrado à história da Bretanha e das suas gentes. No primeiro andar, nem tudo merece uma atenção especial, mas mesmo assim vale a pena ficar por minutos a admirar as belas telas de Lucien Simon, de Matisse, alguns da escola de Pont-Aven, de Robert Delanay ou os desenhos de François Beaulu. A arte sacra é de fugir, os quadros espanhóis uma peste, os franceses um susto. E todavia, os dois quadros que contam a lenda das lavadeiras pela calada da noite, segundo o conto de Yann Postik que começa assim: Prions, chrétiens, prions pour les trépassés, car les Bretons aiment leurs morts, pela qualidade do trabalho e profundidade interpretativa da lenda merecem uma atenção atenta.