Quinta, 26.
Ontem fomos de visita a Quimper antigo
condado da Cornualha. Como sempre por estas paragens chuva e sol casam-se para
nos chatear ou lançar súbitos sorrisos provocadores. Foi assim durante toda a
viagem de hora e meia para cada lado. Chegados à cidade, todas as provocações
iniciais desaparecem ante o vigor que se vê por toda a banda. Quimper é a
cidade da juventude, ela está airosa e impertinente por todo o lado, a tal
ponto que temos de pregar os olhos no chão de forma a não termos terríveis abalos
de coração... Descidos do carro, o olhar aponta as flechas da catedral e com os
olhos nelas, avançamos ao seu encontro por ruas e casas com séculos, praças e
becos onde o tempo petrificou num espanto ou numa carícia banhada da ternura
que a idade possui em abundância. Entre raios de sol e pequenas incursões de
chuva miúda, flanámos por aqui e por acolá, deixando os sentidos andarilhar
cada espaço, extasiar ante uma velha carcaça bem cuidada, onde por detrás das
cortinas avistamos uma luz e uma sombra, um ruído fino trespassado do mistério
que se esconde nas horas, murmúrio ciciado, quase um golpe de dor, um suspiro,
um desmaio, uma recordação caída no fundo do tempo...
- Antes de despertarmos das emoções da chegada, sendo tarde, entrámos
numa velha creperie drapejada de
história, onde nos sentámos diante de um fogo de lenha, na mesa corrida do
canto da sala. Fizemos um almoço inteiramente com crepes - ovos, peixes, doces –
regados com uma excelente sidra, a melhor de todas as que bebi, indiferentes às
horas que, desprezando-nos, prosseguiam o seu caminho para... Deixámos o
agradável restaurante para nos salpicarmos de uma chuva de doidos, por ruas
festivas adornadas de fachadas de todas a cores, nas traves de madeira que as
embelezam à moda germânica, de resto, persiste no ar a par de uma atitude
céltica que se vê por todo o lado. O amplo centro é uma joia conservada pelo
tempo e pela inteligência humana. Vários séculos acumulam-se nas pedras, nas
personagens que as decoram, no rigor do traço arquitectónico, na sua geometria
à escala humana. Ali ninguém morreu definitivamente. Pelo contrário, os mortos
mantêm um diálogo permanente com os vivos, vigiando-os, orientando-os na
conservação e manutenção do seu legado.
- Entrámos na catedral de S. Corentin e somos recebidos pela imponente
nave central, que curva ligeiramente para esquerda até ao altar, tudo majestoso
e sólido, que recebe a pouca luz espaçada do exterior através dos vitrais de
uma beleza comovente. Gótica no belo exemplar destas paragens, imponente como a
desejou no século XV o seu bispo, respira-se dentro dela os alvores de outros
tempos, quando a Igreja rica e prepotente, dispunha dos fiéis segundo regras
estritamente pessoais e muitas vezes arbitrárias. Uma grande tela, mostra o
padre Maunoir recebendo do anjo suspenso das alturas, tocando a língua do
sacerdote com um dedo delicado e gracioso - segundo a lenda nasceu então o
bretão como expressão linguística.
- Mais tarde visitámos o Museu das Belas Artes. Espaçoso para uma cidade
do Finisterra, cuidado e simples, com espaço folgado para o visitante admirar o
rés-do-chão consagrado à história da Bretanha e das suas gentes. No primeiro
andar, nem tudo merece uma atenção especial, mas mesmo assim vale a pena ficar
por minutos a admirar as belas telas de Lucien Simon, de Matisse, alguns da escola de Pont-Aven, de Robert
Delanay ou os desenhos de François Beaulu. A arte sacra é de fugir, os quadros
espanhóis uma peste, os franceses um susto. E todavia, os dois quadros que
contam a lenda das lavadeiras pela calada da noite, segundo o conto de Yann
Postik que começa assim: Prions,
chrétiens, prions pour les trépassés, car les Bretons aiment leurs morts,
pela qualidade do trabalho e profundidade interpretativa da lenda merecem uma
atenção atenta.