domingo, novembro 01, 2015

Domingo, 1 de Novembro.
Adoro esta cidade. Tudo nela me encanta, me detém o passo, me força à admiração. Esta manhã em deambulação pelo centro, Praça Kleber e assim, com pouca gente, sentei-me num café quentinho (aqui faz um frio de rachar) para uma bica contemplativa, a exploração das horas no fumo compacto do tempo, submerso em pequenos nadas, vapores demoníacos que subiam ao meu cérebro liberto das amarras romanescas. Quis deter o tempo, embrulhá-lo em papel celofane transparente e fazê-lo reviver pela magia do ar transportado nas recordações eternas que cristalizaram na outra margem de uma vida por cumprir. Durante uma hora, assisti maravilhado ao acordar da cidade, à chegada das ruas estreitas e dos canais de uma pequena multidão de seres enroupados de agasalhos pesados para o primeiro café da manhã. A luz ainda não tinha aberto as suas asas translúcidas, nem projectado sobre a catedral os fios luminosos que incendeiam as certezas imortais. Na neblina pastosa da manhã, teimava em subsistir o rumor insinuante da noite, que os prédios de madeira velha guardam para despertar os habitantes futuros. Toda esta atmosfera que os sentidos acordam deixa-me perplexo, apático, grudado na sobrevivência que renasce todos os dias do silêncio e da lembrança dos mortos...

         - Montmarte à noite, espece de Albufeira da minha juventude, por onde flanei livre pelas ruas estreitas, esplanadas cheias e mocidade exuberante!

         - Montmartre livre da confusão às primeiras horas do dia, lavada e perfumada pelo ar fresco e o vento murmurante, de caneta na mão, o caderno sobre a mesa, os sonhos vagabundos!

         - Montmartre. O primeiro café da manhã num bistro de rasgadas janelas, acolhedor, como se estivéssemos numa esplanada, os tímidos raios do sol desenhados no tampo de madeira gasta, os sons do acordeão em fundo!

         - Montmartre dos tempos da minha adolescência, sem um franco no bolso, cheio de projectos e sonhos, abandonado à minha sorte, carregando a alegria de me saber em Paris sem compromissos, vivendo da loucura dos ímpetos e dos segredos que não se contam senão às horas enterradas nos desassossegos íntimos!   

         - Montmartre das rampantes escadas da Rue de Chappe!

         - Montmartre do Sacré Coeur, do seu zimbório lá no alto abraçando a cidade, com vista para a imensidão de luz que se derrama crua sobre os telhados de Paris onde cai uma chuva sem peso nem memória!  


         - Montmartre. Nostalgia de um tempo errante coalhado de tristeza sem fim, do olhar turbado pela emoção que desfaz o coração em mil pedaços e nenhum deles se ajusta à justa medida do tempo que exausto se atira ao vazadouro de todas as esperanças...