Domingo, 1 de Novembro.
Adoro esta cidade. Tudo nela me encanta,
me detém o passo, me força à admiração. Esta manhã em deambulação pelo centro,
Praça Kleber e assim, com pouca gente, sentei-me num café quentinho (aqui faz um
frio de rachar) para uma bica contemplativa, a exploração das horas no fumo compacto
do tempo, submerso em pequenos nadas, vapores demoníacos que subiam ao meu
cérebro liberto das amarras romanescas. Quis deter o tempo, embrulhá-lo em
papel celofane transparente e fazê-lo reviver pela magia do ar transportado nas
recordações eternas que cristalizaram na outra margem de uma vida por cumprir. Durante
uma hora, assisti maravilhado ao acordar da cidade, à chegada das ruas
estreitas e dos canais de uma pequena multidão de seres enroupados de agasalhos
pesados para o primeiro café da manhã. A luz ainda não tinha aberto as suas
asas translúcidas, nem projectado sobre a catedral os fios luminosos que
incendeiam as certezas imortais. Na neblina pastosa da manhã, teimava em
subsistir o rumor insinuante da noite, que os prédios de madeira velha guardam para
despertar os habitantes futuros. Toda esta atmosfera que os sentidos acordam
deixa-me perplexo, apático, grudado na sobrevivência que renasce todos os dias
do silêncio e da lembrança dos mortos...
- Montmarte à noite, espece de Albufeira da minha juventude, por onde
flanei livre pelas ruas estreitas, esplanadas cheias e mocidade exuberante!
- Montmartre livre da confusão às primeiras horas do dia, lavada e
perfumada pelo ar fresco e o vento murmurante, de caneta na mão, o caderno
sobre a mesa, os sonhos vagabundos!
- Montmartre. O primeiro café da manhã num bistro de rasgadas janelas,
acolhedor, como se estivéssemos numa esplanada, os tímidos raios do sol desenhados
no tampo de madeira gasta, os sons do acordeão em fundo!
- Montmartre dos tempos da minha adolescência, sem um franco no bolso,
cheio de projectos e sonhos, abandonado à minha sorte, carregando a alegria de
me saber em Paris sem compromissos, vivendo da loucura dos ímpetos e dos
segredos que não se contam senão às horas enterradas nos desassossegos íntimos!
- Montmartre das rampantes escadas da Rue de Chappe!
- Montmartre do Sacré Coeur, do seu zimbório lá no alto abraçando a
cidade, com vista para a imensidão de luz que se derrama crua sobre os telhados
de Paris onde cai uma chuva sem peso nem memória!
- Montmartre. Nostalgia de um tempo errante coalhado de tristeza sem
fim, do olhar turbado pela emoção que desfaz o coração em mil pedaços e nenhum
deles se ajusta à justa medida do tempo que exausto se atira ao vazadouro de
todas as esperanças...