segunda-feira, novembro 23, 2015

Segunda, 23.

Estamos em Quiberon. Deixámos Paris com uma temperatura a rondar os zero graus. Aqui o clima é mais temperado. Ao ritmo em que vivo, muita coisa fica por registar e isso pouca importância tem com efeito. Talvez hoje queira recuperar do cansaço da chegada, do romance a tolher-me os sentidos, as forças, o ânimo para acudir o tempero do tempo na perpetuidade de uma vida. Por exemplo, a longa caminhada, sábado, pelas ruas de Paris, de Saint-Michel, Rue des Écoles ao Instituto Árabe, seguindo pela esquerda a Notre-Dame, subindo de seguida ao Luxembourg num último aceno aos livros, muitos quilómetros debaixo de uma chuva ininterrupta, sem guarda-chuva, os olhos siderados na beleza que enche os espaços, os bistros, os prédios e os telhados de lousa, encharcado até aos ossos, fechado em mim, o Sena quedo no lugar que sempre foi o seu, a liberdade que assusta os jihadistas lançada à porfia nas esplanadas, bares e sítios onde a memória da cidade se perde em contemplações mudas. Gosto deste rumor, não só porque ele se me impregna, mas porque com ele posso embebedar-me da loucura caída nas horas perpassadas do mistério que as fecunda. Recordações sobrepostas, pensamentos vagabundos doridos atravessando o meu cérebro como raios varrendo os ermos de silêncio, antes do céu descer o manto de luzes bruxuleantes sobre a terra, momento único, que faz parar o mundo ante o espanto renovado das auroras que chegam mais tarde, regozijando de hossanas, força, energia e suavidade. Uma hora no interior de um café, diante de uma chávena de chocolate quente, a secar o blusão e as calças, a aquecer o coração, conquistado pelas vozes de uma clientela que ri e canta o descanso merecido do fim-de-semana, uma nesga de rua onde quase não passa vivalma, a chuva como um reposteiro espesso descendo do céu cinzento, o tempo, o tempo abençoado da minha existência descontraída, alheada do passado, submersa num mar benfazejo que a riqueza não tempera, em permanente diálogo comigo, espécie de introspecção que me absorve e esgota as horas, as enche do júbilo que entontece, enfeitiça, submete e as revigora, vigiadas por Deus, omnipresente. A vida! A vida tão rica que nos imobiliza! A exultação em cada lágrima que não sustenho!... Que a escrita me permita passar para cada leitor a paixão que ponho em cada instante.