Quinta, 19.
Decidimos deixar Paris e passar a próxima
semana inteira em Kiberon. Saímos domingo de manhã cedo para fazer a viagem de 500 quilómetros. Gosto muito da pequena cidade bretã à beira-mar e da casa que
o Robert comprou há anos e tudo refez a seu gosto. Vou para ouvir o friso do vento
nas janelas altas do meu quarto no primeiro andar. Vou pelo prazer de deixar
Paris e aligeirar a cabeça de tanto tumulto. Vou para ver o mar revoltoso
vergastar a costa pedregosa, onde as aves levantam voo em círculos esvoaçantes
de graça. Vou para escutar o silêncio da praia às primeiras horas do dia. Vou
para veranear no mercado montado na praça principal. Vou pelas cores que tem a
cidade à noite, as casas de madeira, os becos floridos, a luz que vem de Belle-Île
onde Sarah Bernhardt declamava versos ao balcão da sua casa frente ao Oceano pela
noite dentro. Vou para respirar o ar marítimo, ver a dança dos barcos regressar
e partir do pequeno cais que une todas as ilhas em volta, pelo café dos pescadores,
húmido e folgazão, de onde se vê chegar os apressados para o primeiro barco do
dia. Vou para me impregnar dos momentos passados, trazê-los de novo refeitos
dos instantes que a memória esqueceu e esquecendo os reinventa intactos ao dia
que se abre diante dos meus olhos deslumbrados de tanta luz, de tanto mar, de
tanto céu de um azul imaculado, projectado nas águas desassossegadas que a
areia beijam com volúpia. Vou para olhar o horizonte de água onde de tempos a
tempos passa um navio em viagem para lá do oceano sem fim. Vou para me
enfrentar, desafiar os meus medos, consentir que as sombras abram os
guarda-sóis diáfanos e desafiem as silhuetas da morte que se escondem entre as
rochas escuras. Vou para me olhar face a face, reconhecer em mim a fragilidade
de quem vive na brecha entre dois mundos, o interior e o exterior, ambos no
limite da vida quando esta absorve a natureza peculiar do instante que desaparece
aberto o inexorável abismo. Vou para me lavar das mágoas que não se revelam,
das frustrações que adormentam, dos desejos não saciados. Vou porque tenho de
ir e a vida me chama em acenos circunspectos, travados na fronteira que me faz
balancear o corpo entre terra e céu, entre mar e praia, entre mim e mim, seixo
perdido na areia branca que a luz do sol dá forma e movimento e densidade e
perspectiva. Vou porque quero experimentar a fisionomia que tem a existência
liquefeita, atirada fora de mim, para um lugar mineral, frio e côncavo, à hora
das gaivotas rasantes às casas com nomes bretões, soletrados com a língua no
palato, fazem o definitivo voo antes de rumarem a outros mundos onde ninguém me
espera e onde acabo por chegar atrasado e cansado de mim...
- Chove. Faz escuro. Da Avenida Romain Rolland chega-me o insinuante
ruído dos carros a passar, às vezes de ambulâncias. Ao longe, para lá do parque
de la Courneuve, através das árvores como braços abertos, avisto um tule de luz
cintilante. Estou em Paris. Faz tanta tristeza que não pode haver tanta. Estou
aqui, estou ailleurs.