terça-feira, novembro 24, 2015

Terça, 24.
Outro dia fomos ao teatro ver a peça de Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido por Molière, Trissotin ou Les Femmes savantes. A encenação é de Macha Makeieff e, embora a acção se passe no século XVII, a senhora transpô-la para os anos Setenta do século passado: cenários, guarda-roupa, mobiliário de cena, artifícios químicos e até um gravador de bolso. Bom. Não li o penúltimo original escrito pelo autor de Tartufo antes de morrer, mas do que me foi dado ver, tudo é permitido e o resultado balança entre uma peça de revista à portuguesa e uma de boulevard, sem contudo deixar de reconhecer que há nela momentos muito bem conseguidos de humor e criatividade. Seja como for, o texto do ilustre escritor preferido de Louis XIV, resiste a tudo e passa incólume através dos tempos a todas as barbaridades. Uma nota para o naipe de actores. As três mulheres loucas (uma delas é representada por um homem num papel absolutamente extraordinário, Thomas Morris). Quanto a Trissotin sublime de provocação e sedução. Pena que a realizadora não tivesse desenvolvido melhor esta figura central de poesia e humor, hipocrisia e sensualidade, representada pelo actor Geoffroy Rondeau. Um espanto agradável: a sala do TGF estava esgotada, não obstante o terror de novos ataques. E nela, em grande número, imperava a juventude. O teatro – é salutar reconhecer - permanece enraizado nos franceses.

         - Justamente. Sempre ouvi e li toda a espécie de insinuações sobre a autoria das peças de teatro escritas por Molière. Muitos estudiosos dizem ter sido Corneille o seu autor. Bom. Por outro lado, o público interesse de Louis XIV pelo autor-actor, mais não era que o interesse de um rei centralizador e prepotente que punha e dispunha de um homem polivalente e trabalhador que trouxe à arte de representar uma riqueza literária e cénica impressionantes. Na aurora do género operático, vindo de Itália, pelo final do século XVII, o Rei-Sol, percebeu a importância da nova expressão artística e logo, pura e simplesmente, deixou cair Jean-Baptiste Poquelin seu protegido, em favor de Jean-Baptiste Lully. No final da vida, apesar de doente, nunca abandonou os palcos e a trupe de actores que o acompanhou por todo o lado e que ele adoptou como família. Um entre todos se distinguiu pelo afecto e a ternura, tão intensos que as más línguas atribuíram uma relação amorosa. Morreu em cima das tábuas.

         - Green est toujours assez beau, si l´on veut: un air de jeune santé, de gros pieds aux vilains soulliers, et la réserve saxonne qui n´est pas de la maussaderie. Mais il n´est pas très intelligent, ou plutôt il n´a aucune habitude à l´intelligence: il n´y manoeuvre pas, n´y voit pas... Catherine Pozzi, Journal (1913-1934). Pozzi fala deste modo do autor de Mont-Cinère porque ele nunca se envolveu nas questiúnculas literárias e nem sabia nadar nessas águas. Ia nos seus 28 anos e uma vida por cumprir. Portanto, madame, ponto final.

         - Um dia da semana passada, fomos tomar café a casa da actriz Hélène Delavault. Ela habita próximo da Place Clichy, num magnífico andar decorado com gosto, no prédio que é propriedade da Ursula e onde eu vivi no passado uns tempos. Conheci a Hélène começava ela o caminho para a celebridade de que hoje usufrui. Mulher de teatro, do canto, do espectáculo, produtora, encenadora, actriz nem por isso perdeu o encanto de sedução e simpatia que tanto me atraíram e nos fez juntar numa amizade que perdura através dos anos. Mesmo em casa, não deixa a postura que é natural nela, aquela que os espectadores vêem na televisão ou no teatro, e de que os olhos são os atributos mais impressionantes a par de um corpo de mulher elegante, quase sempre vestida de escuro. Durante o encontro conversou-se muito dos atentados, mais a mais porque ela adora Saint-Denis e tinha acabado de adquirir um andar no prédio que fica mesmo por detrás daquele onde os trágicos acontecimentos tiveram lugar. Como tinha um programa demasiado preenchido, não pude aceitar o convite que me fez para ver a peça Farben de Mathieu Bertholet que está em cena no teatro La Tempête desde Novembro passado. Há uns anos estivemos juntos em dois espectáculos que ela deu em Lisboa e Costa da Caparica. Combinámos que iria visitar-me a Palmela no próximo ano.  


         - A propósito de Ursula. Uma manhã recebi uma mensagem dela, anunciando-me que acabava de desembarcar em Paris vinda de Strasbourg aonde fora como palestrante num congresso de filosofia. Queria estar comigo e se podia eu ir ao seu encontro, “mais a mais porque no ano passado não estivemos juntos”. Lá fui com gosto. Estar com ela, é ficar no centro de um vulcão expedindo larva e fogo. As histórias sucedessem sem interrupção nem possibilidade de acompanharmos o seu raciocínio veloz, como se toda ela fosse movida por um sistema complexo de engrenagens que engatam umas nas outras. Encontrei-a no apartamento que conheço bem, hoje transformado num autêntico bric-a-brac sem nenhum espaço livre de toneladas de livros, quadros, fotografias, cadeiras, bancos baixos, maples, tapetes uns sobre os outros, à entrada toneladas de roupa suja, numa desordem indescritível de levar à loucura qualquer dona de casa portuguesa da classe média. Para me sentar, tive que fazer descer do sofá uma braçada de livros que literalmente os atirei para o chão não havendo espaço noutro sítio. Ursula, com a idade, ficou ainda mais pequena e do modo como se veste, parece-se a um petit bonhomme: calças e casaco cinzentos, mangas tão grandes que não se lhe vêem as mãos meãs, cabelo branco curto, um ar impositivo de pessoa habituada a enfrentar tudo e todos, uns olhos penetrantes de sabedoria e agilidade intelectual. Conhece todo o mundo filosófico e sendo de origem alemã, nada lhe escapa dos pensadores que Nietzsche dizia serem uns chatos. A par da filosofia, a música é a sua paixão. Gosta sobretudo dos clássicos germânicos que interpreta ao seu piano que ocupa uma das cinco divisões do apartamento. Traumatizada com a Segunda Grande Guerra, a ela volta com frequência para redizer aquilo que ainda lhe magoa o coração. As horas que passámos juntos, voaram num ápice. Praticamente só falei nos intervalos da chuva torrencial que brotou dos seus lábios finos e do seu cérebro em labaredas.