sábado, novembro 07, 2015

Sábado, 7.
Ontem fomos dar uma volta na viatura antiga em que eu vi Robert trabalhar nestes últimos anos. O meu amigo é um bricoluer nato, habilidoso e estudioso das coisas que a mim me escapam completamente. Do nada ele faz nascer algo que outros poriam de parte por inútil. No parque de automóveis antigos de um valor incalculável, existe pelo menos mais uma dezena de veículos que duas vidas não chegam para recuperar e pôr a funcionar. Era a paixão de uma vida do pai de Annie que herdou a colecção. O marido já conseguiu recuperar quatro ou cinco e todos são hoje peças únicas que participam em rallys e fazem a admiração não só dos ricos aficionados como dos mirones. Por onde passámos, as pessoas paravam extasiadas  e faziam-nos gestos de apreço. Eu, dando-me ares de papa, do alto do meu assento, abençoava os que me saudavam. Toda a gente se ria.

Chassi em reparação 
Sizaire de 1928 

         - Acabei de chegar de um passeio pedestre pelo centro de Saint-Denis. Chovia. Chove. Eu que raramente tomo o autocarro, entrei num que passava. Sublime viagem, aconchegado pelo rumor concentrado dos passageiros no interior e pelo balbuciar da chuva contra os vidros da janela onde ia numa espécie de ululação interior que me transportava às alturas da poesia que dardejava no ar. Apeado no centro, caminhei sem destino por entre a multidão de almas, numa mistura de raças, cores, odores, religiões, culturas, formas de trajar, de ser, de estar, de conviver, que uma força unia através do impulso que renova a vida e traz à superfície os elementos indispensáveis ao futuro. Futuro que almejo vigoroso, porque é impossível que esta força que se desprende das diferenças não venha a ser proveitosa para o todo. A França, ao assimilar todos estes povos, toda esta força, todo este sofrimento, irá ser recompensada e sairá mais robusta, mais humana, correspondendo aos valores que sempre a norteou. Poucos são os dionisianos de gema, mas esta mistura, esta convivência entre uns e outros, lavada dos problemas da integração, vai trazer à cidade e ao país um desenvolvimento proveitoso que acabará por servir a toda a gente.


         - Ando tão feliz por não trazer o romance à ilharga! Ufa! Que pesadelo deixei eu de lado! Dito isto, ocorre-me pensar em Madame Juju, José Tormentoso, o velho Lascas, o ganancioso ex-secretário das Finanças Abílio Menezes, o facínora ministro das Obras Públicas e advogado dos ladrões institucionalizados Jeremias Carrapato, a mulher Leonor da Conceição arrogante directora do Instituto da Toxicodependência que exigia dos funcionários a tratassem por senhora presidenta, e... Todo esse mundo vem com frequência inundar os meus sonhos, bater à porta da minha quietude, do meu alheamento, como mendigos a quem urge abastecer do essencial à existência. Mas eu fecho-lhes a porta com estrondo na cara, recuso-me a recebê-los, a ouvir os seus queixumes, a recordar a vida de dois anos e meio partilhada. Quero esquecê-los, ignorar os seus assobios pela calada da noite, empurrá-los para outros destinos, outras moradas.