segunda-feira, novembro 16, 2015

Segunda, 16.
Outro dia preparei um almoço para a nossa amiga Therese que decorreu sem formalidades na cozinha. Mulher interessante, aos sessenta anos e depois de uma vida a escutar páginas inteiras de cor da Recherche ao marido, um reconhecido intelectual funcionário superior dos arquivos do Château de Vincennes, decidiu atacar a longa obra de Proust. Tendo feito carreira numa orquestra, a vida inteira consagrada à música, foi com espanto que lhe ouvi dizer que não gosta de Mozart. Quando quis saber as razões, encolheu os ombros, absorta, o olhar imóvel no espaço e no tempo, em busca da resposta que acabou por não chegar.

         - O Papa disse que utilizar o nome de Deus para a prática de actos violentos (referia-se aos ataques em França) é uma blasfêmia.

         - Há um curto espaço de tempo nas minhas manhãs que vivo sempre intensamente: a ida com o Robert ao restaurante Cinco Quinas tomar um bom café português. O patrão, um homem meão, do Norte, acolhe-nos como se fôssemos os melhores e mais abastados clientes. Em torno do balcão, de segunda a domingo, está Portugal inteiro a bebericar água-ardente, a olhar a televisão (SIC), ou a mirar através dos vidros baços. Ao fundo, debaixo da TV, sentados em torno de meia dúzia de mesas, estão os amigos da sueca, do dominó, da cerveja a copo. Dependendo do seu estado de espírito, a algazarra tanto agrada ao meu amigo como o faz desaparecer a bica tomada num minuto. Todo aquele mundo vestido de negro, de barrigas inchadas e olhos vítreos, não fala de nada que jeito tenha, antes murmura grosso naquele modo que têm os portugueses da província quando a noite desce e os corpos se juntam num aceno solidário de quem começa aí a sonhar acordado. Entre eles, sobressai um sujeito gordo com um sorriso de criança abandonada, que imita às mil maravilhas várias miadas de gato. Fá-lo com tal perfeição, que a primeira vez que o ouvi, julguei haver por ali um felino vadio. Foi preciso o dono do restaurante prevenir-me do feito do seu conterrâneo para acreditar que o bichano era ele. Por isso, antes de sairmos, saudei-o: “Até amanhã, senhor gato.” E ele muito surpreendido e com os olhares dos outros postos nele: “Senhor gato!” Gargalha geral.


         - Tínhamos dois espectáculos teatrais agendados: um para ontem, outro para hoje. Foram cancelados por medo de possíveis ataques. Françoise e Elyette deviam vir também - telefonaram a desmarcar por medo de viajarem no metro. Estamos nisto.