Sexta, 20.
A polícia rejubila e os franceses
respiram de alívio: o simpático e sorridente Abdelhamid Abaaoud, foi mesmo
liquidado no prédio em ruína anteontem tomado de assalto. Que dizer? Como estou
sem palavras, convoco William Blake: Le
gémissement du malheureux soldat saigne sur les murs des palais.
- Outro dia, na creperie
L´Etang d´Art, enquanto Robert foi ao carro buscar a Annie, tendo-me sentado na
única mesa vaga, encontrei na imundice em que os anteriores clientes a deixaram,
um smartpfone da Apple que devia valer mais de mil euros. Apressei-me a entregá-lo
à proprietária que o guardou na gaveta do balcão. Quando os meus amigos
chegaram, já a mesa estava limpa e eu contei-lhes o que tinha achado. Robert
confirmou o valor. Um tempo depois, com efeito, entrou espavorido na sala um
rapaz de perto de dois metros de altura que se dirigiu ao balcão solicitando o
que lhe pertencia. De longe observamos o rápido diálogo, o cliente aponta na
direcção da mesa onde estamos sentados, desiludido. É então que eu o chamo e
lhe pergunto se vem pelo portátil. Ante a confirmação, digo-lhe que o encontrei
quando me sentei e o confiei à dona do estabelecimento. Esta, sem poder escapar
à evidência, devolve o que não lhe pertence, atirando o aparelho ao seu
legítimo dono. Este enfia-o no bolso e desaparece. Comentário da Annie: “Ele podia
ao menos ter-te agradecido a honestidade.” Respondi-lhe: “Era minha obrigação e
desta gente rasca, educada na abundância não espero nada. Os próprios objectos
com que se empanzinam, são as linhas de conduta que os definem.”
- Esta noite viajei por Espanha. Atravessei a Andaluzia e desembarquei
em Alhambra repetindo o percurso que fiz no início deste ano com o Carlos
Rodrigues. Que veio fazer esta invasão ao meu sono? Mistério. Talvez trazer-me
um toque de liberdade absoluta, num momento em que esta parece estar ameaçada pelo
radicalismo daqueles que põem na religião o fardo das suas loucuras e ambições.
Seja como for, tive uma noite deliciosa, passada pelo crivo da amizade, das
refeições prazenteiras à borda da estrada, dos hotéis simples e cómodos onde
pernoitámos, dos locais com história que visitámos sem pressa, dos dias
agradáveis beijados pelas manhãs acetinadas pela geada, dos passeios pedestre
em volta do hotel, quando a noite fria e crua banhava as muralhas da Medina
adormecida, seguida da aurora ainda o dia não florescia no horizonte. E de
súbito o sms do Robert dando-me conta dos atentados que ocorreram horas antes
no jornal Charlie Hebdo. O frio que
senti atravessar o meu corpo, a estupefacção, a interrogação... Amenizados,
todavia, horas depois ante a beleza de Alhambra quase deserta, visitada com
vagar e voluptuosidade, a mesma ali vivida por sultões e concubinas, protegidos
pelos muros altos de verdura, o silêncio das noites cobertas pela pele dos
corpos enfurecidos, pelo amor aromatizado dos segredos mordidos ao ouvido, dos
suspiros lânguidos quando as rosas dos canteiros em volta expelem o derradeiro
gemido, descido pétala a pétala sobre os corpos esvaídos de loucura e prazer...
Pátio do Leões |
Muros de verdura acesso aos palácios |
Os grandes lagos e jardins |
- Tenho recebido alguns emails que me reconfortam, mas o que me enviou
ontem a leitora e amiga Maria de Lurdes, pela simplicidade e espontaneidade -
que traduzi, de resto, aos meus amigos -, mostra o que resiste de melhor no
coração português: "Helder venha embora. Traga
os seus amigos para Azeitão, para a sua belíssima quinta. Benjinhos e bom regresso." Dois pormenores : a quinta fica em Palmela e é simples como quem nela vive .