domingo, maio 23, 2021

Domingo, 23.

Nestes últimos dias pegou-se-me uma cavada taciturnidade do passado. Eu tão pouco dado a ir ao fundo das sombras ressuscitar os esqueletos, vi-me invadido pela obsessão de entrar no meu outrora apartamento da Rua de S. Marçal, fazer sinal a Maria que subisse para um serão a dois, onde só ela falava na linguagem sábia de quem não teve nenhuma espécie de instrução, mas por magia da inteligência e do carinho que dedicava ao vizinho do primeiro andar, enchia de felicidade as quatro paredes da sala e as horas deslizavam no encanto do seu convívio. Quantas vezes foi ela que inundou com a sua presença as minhas noites vazias, cansadas, solitárias e chegava sempre com qualquer mimo – um prato de arroz doce, uma compota, uma panela de sopa, meia dúzia de pataniscas – mais a disponibilidade para pôr ordem na cozinha, lavando os pratos que se amontoavam na banca de mármore e outras pequenas tarefas que a minha vida nessa altura desarrumada e cheia de trabalho não permitia. No número 17 conheci todos os hosanas do amor, por vezes impulsivos, como um rasgão que em vez de causar dor, se acomoda nos sentidos traduzindo os instantes de orgias-luz que aquieta, acalma, irmana num mesmo amplexo corpo e alma. Os primeiros acenos de liberdade, foi lá que os vivi, os cantei, naquela imensa casa velha, pombalina, com tectos em madeira e pinturas antigas nas paredes, um saguão para as traseiras com dois bancos em pedra de cada lado das janelas de guilhotina. O sol banhava-a logo às primeiras horas da manhã e, quando a pouco e pouco foram entrando os amigos por muito tempo encostados às paredes da divisão,  até que houve dinheiro para construir a grande estante que ocupava a parede do fundo do escritório, onde eles exibiam silhuetas radiosas. Ao interior chegavam não só os amigos sem imagem publica, como os outros ligados ao mundo onde cedo navegava: colegas jornalistas, escritores, gente da cultura, actores... A vizinhança a princípio estranhou o “miúdo” com cara e corpo muito juvenil pudesse viver só; com o passar dos meses adoptou-me e tinha em todos um amigo. Foi lá que escrevi o primeiro romance, que sonhei uma vida que no íntimo sabia não ser possível, me fatiguei a trabalhar sem espaço verdadeiramente para o sonho, para a vida no pleno do entusiasmo, sem a inconveniência das responsabilidades que sempre me prostraram os ombros. Dividi-me por mil caminhos e nenhum encontrei que pudesse substituir as horas íntimas e profundas vividas dentro daquelas sólidas paredes. Foi lá que me apercebi da imensa liberdade que tinha, e isso formou o meu carácter e juntou a quem sou o elemento original que a minha natureza solitária surpreende os meus interlocutores. O meu projecto de vida, finalmente, sempre se teceu nos fios infindáveis da liberdade. Fui e sou um ser livre e por muito que a idade ao avançar se queira intrometer, acho que possuo no meu interior a força que acumulei nos meus primeiros anos de adulto longe das amarras sociais e morais, naquela casa de S. Marçal onde só entrava quem eu queria e onde a felicidade reinou nos espaços confinados dos segredos de que toda a habitação possui a custódia. Até a minha primeira e inopinada entrega ao amor, na casa ainda completamente vazia, sem uma única peça: mesa, cadeira, colchão, prato ou sofá, nesse dia imorredouro, onde dois corpos em pureza e beleza se consagraram, num suspiro de eternidade, sobre o chão de tábuas corridas, devo as horas que me rejuvenesceram até hoje; a esta tarde cheia de sol, neste lugar isolado onde nenhuma presença humana nem voz de gente chega; reivindico a vida vivida há quarenta anos, num bairro lisboeta sossegado, ouvindo o jogo da bola dos miúdos da rua, num sincronismo perfeito onde tudo e cada elemento traz à recordação a mais impressionante imagem que o presente pode imprimir para sobreviver à catástrofe. Então como agora, resta-me fechar a porta da casa, embrulhar a dor, deixar o cérebro perder-se em imagens de uma nitidez impressionante, respirar o silêncio irmão da liberdade e esperar que a harmonia volte ao enlaçamento do futuro. Carpe diem! Farei os possíveis, querido Horácio.