sábado, maio 08, 2021

 Sábado, 8.

O episódio do empreendimento turístico de Odemira, não pára de nos surpreender. Desde aquele oficial graduado da GNR, todo pimpão por aparecer na televisão congratulando-se com a “operação bem sucedida”, ao patético para não dizer pateta ministro do Interior, o tal que é ministro exclusivo do partido onde milita, tudo é de tal modo desastroso que desta não sairá imune o primeiro-ministro, principal responsável pelo que aconteceu mais uma vez na noite de ontem (o homem deve gostar de morcegos). 

         - Pelas vinte e duas horas, uma patrulha da GNR fez levantar os malogrados imigrantes das camas do resort Zmar onde, esgotados do trabalho e da confusão descansavam, enfiá-los nas carrinhas e viajar para outro aldeamento onde outras casas e outras camas os esperavam. O que aconteceu entretanto? A resposta vem segundo os quadrantes políticos, empresariais, autárquicos e governamentais. Não tenho visto noticiários nacionais (ufa!) desde que consegui montar a nova box que me dá acesso ao essencial do mundo. Vou por isso, reter-me no que leio no Público. Na origem desta reviravolta, está a falsa requisição civil, redigida pelo tal amigo de Costa, e que os residentes do empreendimento não aceitaram e compagina abuso de poder por parte do ministro da Administração Interna. Ela foi escrita pelos dois amigalhaços, António Costa e Eduardo Cabrita. Entretanto, ontem, o Supremo Tribunal Administrativo aceitou a providência cautelar apresentada pelos donos das habitações do complexo. Isto levou o Governo e a Câmara de Odemira a acelerar uma alternativa. Talvez a sequência dos factos não seja bem esta, porque, como é usual nas leis portuguesas, nada é transparente para permitir aos inchados advogados manterem o seu estatuto de homens abastados e acima das leis que eles próprios fazem. 

         - Este é o Portugal democrático que os políticos tanto louvam e ai de quem proclamar o contrário, leva logo um arraso de fascista e enfiam-no no buraco do inferno a pontapé por um qualquer polícia que não defende o cidadão, mas quem lhe dá o pão-nosso de cada dia e tem poder. Para se perceber o país que os democratas depois de quase 50 anos de democracia construíram, vou transpor esta passagem do artigo de João Miguel Tavares, sempre bem documentado e lúcido (naturalmente para a esquerda, fascista). “(...) o Governo decide requisitar o Zmar inteiro, embora só precise de uma dezena de casas. Os proprietários afiam logo as garras, embora não sejam as casas deles nem se perceba muito bem que propriedades têm (as casas mas não os terrenos em que as casas estão?). Os responsáveis pelo Zmar agem como não estivessem falidos e o seu maior credor não fosse o Estado (60 milhões de dívida diz Cabrita). E o próprio Zmar que só tem licença de parque de campismo (e caducada ao que parece) que foi construído em cima de uma reserva ecológica; que é um projecto PIN (Potencial Interesse Nacional)  dos saudosos tempos socráticos (o homem está em todas, acrescento eu); que foi inventado por um membro da família Espírito Santo (oh! exclamo eu); e que foi financiado pelo BES; esse Zmar é, de facto, o cenário de sonho para exibir as disfuncionalidades do país – infelizmente à custa de gente paupérrima, que agora foi de novo enxotada por ordem do tribunal. É caso para perguntar: onde está o Estado, onde está a justiça, onde estamos nós.” Portugal está aqui bem retratado: o Portugal de ontem, de hoje e de sempre. Temos e tivemos perpetuamente maus políticos, os portugueses não merecem tão má sorte. Francamente.  

         - E todavia. Que dignidade oferecemos nós aos que nos vêm ajudar no trabalho que hoje os portugueses armados em finórios ou mal pagos pelos patrões não querem fazer. E lembrar-me eu do que vi nos anos Setenta, em Paris, aonde fui fazer uma série de seis ou sete reportagens para o jornal A Capital sobre a condição dos nossos concidadãos em França. O bidonville de Saint-Denis nos arredores da capital, era um campo de vários hectares de barracas, caminhos enlameados, miséria, promiscuidade, tristeza e dor onde viviam milhares de emigrantes que tinham saído do país “a salto”. De cada vez que lá fui em trabalho, chegava a casa e fechava-me no quarto para descarregar a tensão num choro convulsivo. Não suportava aquela desumanidade, aquele sítio onde ratazanas passavam enquanto entrava nas “casas” de tábuas carcomidas, buracos autênticos que os humanos dividiam entre si como se fossem animais. Uma vez pedi a um casal do Minho que me deixasse pernoitar na sua barraca. Aquilo eram duas divisões onde tarde na noite apareceu o filho de ambos pelos seus vinte anos. A mulher fez o jantar – bacalhau, batatas e couves galegas. Chovia se Deus a dava, trovejava, relampejava. Na divisão maior onde dormia o casal, era também a cozinha e sala de jantar, na outra repousava o rapaz. Foi com ele que dormi – enfim, forma de falar – numa esteira. Ele, abatido e morto de cansaço adormeceu logo; eu não me podendo mexer com medo de tombar da cama, passei a noite em claro, submerso num mundo de sons absolutamente terríveis: cães que ladravam sem parar, chuva a bater no telhado de chapa, ruídos de vozes, gemidos, o ressonar do rapaz e dos pais, o roncar dos trovões, como se aquele lugar fosse de almas errantes que pelo adiantado da noite ali desaguavam para levar as dores dos seus habitantes ao sacrifico do novo dia. Quando a madrugada brumosa e cinzenta mal despontara, comecei a escutar o arraial de vozes surdas, portas a bater, bacias e baldes a despejar para as ruas desordenadas do acampamento bátegas de líquidos que pareciam bofetadas ao cair no lodaçal daquele imenso, vasto campo de concentração de escravos humildes, belos, nobres e bons. Por estranho que pareça, ao despedir-me dos que me deram a possibilidade da experiência, sentia-me feliz, pacificado, por ter descoberto que a felicidade, a beleza, a dignidade interior, o aconchego das pessoas queridas, a solidariedade, passa ao lado da pobreza e do abandono dos abonados da fortuna. Ali todos eram irmãos no infortúnio, na luta pela sobrevivência, nos sonhos desenhados ao relento numa qualquer aldeia nortenha, longe do país que não os amava, onde a pobreza e a miséria – afinal a mesma que eles ali viviam – era mais suportável fora da terra que os viu nascer. Depois, mais tarde, vieram os prédios gigantes para aonde transferiram os portugueses tapando assim a vergonha xenófoba dos franceses, espécie de patamar de adaptação ao convívio civilizado. Mas isso é outra conversa de que em altura própria falarei. Por isso, é que me revolta assistir ao que se passa com os imigrantes em Odemira e noutros lugares. 


         - Parece que António Costa em fim de governação da União, botou discurso com banquete no Porto. Merkel não veio. Foi um dia e tal de palavras, palavras, promessas, promessas, desejos e desejos. Tudo o vento norte levará no seu sopro quente. As nossas televisões e jornais derramaram laudas sobre o assunto. O canal 2 francês e a BBC uns escassos cinco  minutos.