sábado, maio 29, 2021

Sábado, 29.

Todo o dia de ontem às voltas por Lisboa. Ou antes ondulando pela cidade tomado por uma espécie de retorno aos meus vinte anos. Comecei, naturalmente, por me encontrar com os amigos na Brasileira e de seguida fui travar a batalha de convencer a minha gestora de conta a conceder-me um empréstimo sob as minhas condições e não das do banco. Comecei por recusar responder a inquéritos que entram na nossa vida pessoal e impus que só respondia ao que achasse apropriado ao caso. Depois bati-me pelo juro mais baixo, argumentei, lutei, coagi a coxearia e por fim adiantei uma fiança no valor do que necessitava, mas com a condição de receber juros do montante. Bati-me uma boa hora, ao cabo da qual saí com um juro de pouco mais de 2 por cento. Satisfeito, dei-me ao luxo de um bom almoço no Chiado, seguido de café no bar da fnac, leitura do Público e, pelas cinco da tarde, tomei o metro e fui ao dentista. Ficaram feitos os moldes para adaptação dos implantes. Paguei a primeira tranche e tomei um táxi para a Av. de Roma. Regressei a casa num comboio apinhado e pensei durante o percurso que aquilo comparado com a charada em que se transformaram as normas da DGS, assinadas por Costa, era o corriqueiro dos dias normais mas de freio nos dentes. Não desembarquei em Pinhal Novo, mas algures numa estação parecida com Montmartre. Todo eu refulgia, andara quilómetros sobre as pernas, a que coxeia e a outra que parece depender agora da que toda a vida esteve sob a sua alçada. A distância a que o Fertagus parou, obrigou-me a palmilhar ainda mais. Enquanto caminhava, ia pensando que todos os quilómetros que se cumularam nas pernas, são espaços de liberdade surripiados à escravidão da escrita e da leitura, à reclusão e ao ritmo-cadência os meus dias. Melhor esgotar-me no asfalto que a galopar as palavras, a página em branco, o esforço da memória que as arrasta para o texto e lhes dá significado ou significação. Quando entrei em casa abracei a Blacka ou Black que me esperava com olhos de fome. Portas dentro, senti progressivamente invadir-me do silêncio que aqui mora e, subitamente, era Outono e o táxi estacionara lá fora, à porta da casa, e eu entrara aspirando o perfume da cera, das divisões passajadas pela Piedade, dos livros que atapetam os muros. Refastelei-me diante da lareira acesa que a minha boa empregada tivera a gentileza de a acender e disse alto para todos os autores que me olhavam satisfeitos e aprumados nas estantes: “Voltei, rapazes! Aqui tendes o vosso vassalo!”  Um ou outro sorriu. 

         - Devia ocupar-me do mundo e do nosso pobre país, mas não quero fazê-lo hoje. Estou ainda mal refeito da alegria e do convívio que reina dentro destas divisões; quero deixar ao portão as misérias dos grandes homens que nos governam. De manhã fui tomar café com o Raul e a Glória a uma esplanada da vila e recebi dele o grosso volume de 1020 páginas do journal de guerre 1939-1943 de Paul Morand que lhe havia encomendado de Paris. Faz calor. Corre uma aragem forte. A tarde reconstituiu-se-me num compacto maço de memórias.