quinta-feira, maio 27, 2021

Quinta, 27.

Esta manhã dei comigo a pensar no tempo que a velhice ocupa com médicos e consultórios, clínicas e laboratórios. É uma espécie de condenação à morte antecipada ou forma de reter a vida às ordens de clínicos que parecem estar acima dela. Havia em toda aquela gente que se cruzou comigo nos corredores e salas de espera, algo de abdicante  e simultaneamente golpe de energia e luz que dimana da heroicidade com que encaram tratamentos e operações, longas horas de espera e o ensaio da morte a chamar pelos vivos que recusam ouvir o seu chamamento. Só um senhor ocupava o tempo a ler. O resto para ali estava, meio apatetados, sem sequer dar atenção ao ecrã que chamava pelo número da senha que ficara perdida entre os dedos. A bem dizer deixaram de viver há muito, mas não se dão conta. Estão um pedaço do que foram, a doença trabalhando para arruinar o que resta. O que noto sempre que sou confrontado com ida aos hospitais, é que dois mundos diametralmente opostos coexistem sob a forma do impulso que a ciência veio trazer à esperança. A própria morte, o morrer simplesmente, sempre achei ser uma questão cultural. A pessoa que possui cultura aceita com altivez as adversidades; a outra que a não tem oferece o triste espectáculo da rendição. Isso, provavelmente, tem a ver com a aceitação da velhice. Devíamos receber a velhice como colhemos a infância. E não nos abandonarmos a ela porque pensamos que os dados estão lançados e só nos resta esperar pelo fim. Acontece que não há fim nenhum; há quando muito a transformação da vida tal qual a conhecemos, numa outra vivência que é a continuação natural desta. Uma vez nascidos, como nos mostra a natureza, renovamo-nos, continuamos e somos por vontade própria um ser que nunca se apaga. A velhice é um ciclo, é um período que nos prepara para a sequência de um outro que não conhecemos, como não sabíamos da existência que nos trouxe aqui antes de contemplarmos o mundo. Os lares estão cheios de velhos, não por serem idosos, mas porque a família se desinteressou deles. É por isso que eu louvo a heroicidade, o sentido solitário que nos aporta imensas armas, mas nenhuma traz o selo da dependência. Envelhece-se mais rápido quando dependemos dos outros, quando lhes entregamos a nossa existência para que eles a governem. Nessa altura, fomos nós que nos rendemos tornando-nos um objecto sem importância nenhuma - um prossegue os seus dias; o outro parou a relembrar o tempo que continua a encher os dias do seu protector. Esse olhar, essa expressão da tristeza que dói e mata, esse descer ao passado prestes a findar, sem, contudo, ver ainda o luz ao fundo do túnel, as horas que faltam para entrarmos no desconhecido, essa viagem sem fim nem regresso, estuga sob o formato de uma amargura que corrói o tempo vazio e invade as vidas dos que nos lares vão apodrecendo. Porque verdadeiramente, num país atrasado como o nosso, onde a vida humana não tem direito à dignidade como, de resto, não a teve a vida activa, é na misericórdia, no coitadinho, no cristãmente amparo que se desenha a desonra de haver vivido num país de rezadeiros, convertidos por uma Igreja que criou um Deus vingativo, para que pudesse submeter o conhecimento, a evolução e o progresso, a dignidade e a revolta, o inconformismo e a liberdade, criando um rebanho de ignorantes facilmente manobrados e aceitando tudo o que viesse da ira de Deus. Se olharmos a velhice que apascenta a existência nos lares, vemos que a base cultural é extremamente baixa ou nula. Se escutarmos nos consultórios a maneira como certos médicos falam aos pacientes anciãos, impondo o seu saber, remetendo depois para o paciente a responsabilidade do acto médico, com papel assinado e tudo a que se julgam com direito e a lei lhes concede, vemos quão são tratados como atrasados mentais, crianças, mentecaptos. Pressinto como deve ser destruidor da identidade do idoso partir sem respeito nem decência, como se a sua vida tivesse sido um fardo para filhos e o Estado que esfrega as mãos de contentamento – menos uma reforma, apesar de miserável, a pagar.