segunda-feira, maio 10, 2021

Segunda, 10.

No fim-de-semana li o último livro de Teolinda Gersão que havia comprado na livraria do Corte Inglês sexta e saído há um mês: O Regresso de Júlia Mann a Paraty. As personagens interessavam-me e julgo conhecê-las sobejamente bem. O trabalho é interessante porque efabula sobre dois homens que marcaram o século XX: Freud e Thomas Mann. Escrito com sobriedade (aparentemente) ao correr da pena, num português exemplar e escorreito, lê-se com satisfação e gosto. O duelo que em vida os dois homens não tiveram ou se aconteceu foi na cave psíquica onde cada um escondia as frustrações e vaidades, os desafios humanos e o destino que a vida escolheu por eles. Mann acusava o psiquiatra de judeu ganancioso por dinheiro; Freud Thomas de homossexual reprimido, invejoso dos êxitos do irmão Heinrich que viveu liberto de convenções morais e outras, abraçou o comunismo como o álcool e várias “excentricidades”, não deixando de ser um excelente escritor, facto que incomodava Thomas cuja escrita para mim não passa de burguesa à moda do Séc. XIX, ambígua, que não abriu aústes para outros domínios senão os que sua natureza reclamava mas ele temeroso recusava. Embora tivessem muito em comum -  fascinação por mitos e pelas filosofias de Nietzsche e Schopenhauer - no dizer de Teolinda Gersão, cada um com suas características intrínsecas, não deixaram de se apreciar e mirar de longe. Suponho que só se encontraram uma vez e foi no caminho de alguma epistemologia que alimentava um e outro, num meio excitante da ciência e da descoberta do eu profundo, em Freud como em Jung, Schnitzler que imperou no princípio do século XX. Desarmando muito do que se dizia da relação entre Freud e Salomé,  a vida dupla que cada um levava, Freud com as suas teorias e Thomas com os seus romances onde só dele fala por entrepostas personagens. “A formação do analista é por natureza diversa à liberdade proteiforme, ou `mágica`, do escritor”, observa certeiramente a autora. Até ao fim da leitura, duvidei se Teolinda Gersão teria lido os Diários póstumos de Thomas Mann. Diários que ele quando deixou a Alemanha atormentado por Hitler, abandonara esquecidos para trás. Apercebendo-se do facto no sul de França (julgo) onde estava refugiado, ordenou ao filho mais velho que fosse ao número 1 de Poschingerstrasse, em Munique, buscar o pacote onde estavam guardadas as centenas de páginas, com a admoestação de não deitar o olho àquilo que ele havia ciosamente escondido. Porque - assim me parece -, se as tivesse lido teria constatado que estão nelas grafadas muita da suspeita de Freud. (O paralelismo entre o Diário de Julien Green com indicação do autor para ser conhecido 50 anos após a sua morte, é neste caso inevitável). Aliás, as relações entre Thomas Mann e o seu filho Klaus são espantosas de descarga emocional, social e moral, e decerto de uma extrema ambivalência de sentimentos. Notável escritor, Klaus, sempre assumiu a sua homossexualidade e a sua dependência das drogas, tendo-se, inclusive, após o fim da Segunda Grande Guerra, suicidado por overdose. Recordo-me de uma passagem em que o pai entra inopinadamente no quarto do filho e o vê nu, e o que ele em consequência anota no Diário. De resto, saliento, se as relações entre o irmão mais velho e Thomas foram desastrosas, já entre Heinrich Mann e Klaus Mann muito amistosas. Eram dois espíritos livres que se apreciavam e respeitavam. Klaus tinha a obra do tio em grande apreço e foi, muito antes do pai, o primeiro a antever o Nazismo. Ele e a irmã exilaram-se nos EUA, o pai muito tempo depois juntou-se-lhes. Há este comentário logo nas primeiras páginas de Teolinda Gersão, que encerra o mundo que foi o do autor de Os Buddenbrooks: “Tudo na vida de Thomas Mann se traduzia numa dor maior do que é usual nos seres humanos, apesar de ele possivelmente não a sentir desse modo, porque se tornara quase incapaz de sentimentos.”  Eis um trabalho sério e criativo do ponto de vista literário e psicológico que eu recomendo aos meus leitores. 

         - No barbeiro esta manhã. Na cadeira ao lado, cliente e empregado conversam. Aquele conta a este que um amigo, acérrimo comunista com dinheiro, decide comprar um carro. O mais proletário que lhe parecia, era o jipe X e vai daí abre os cordões à bolsa. Pensando à moda antiga que devia fazer a rodagem da máquina, rumou, claro está para o Alentejo. Nas grandes planícies alentejanas gado não falta e eis que de súbito uma mancheia de vacas atravessa a estrada. O homem pára de repente uma vaca enfia os cornos na dianteira e o pobre condutor reclama vendo a chapa amolgada. Aqui começa a narrativa do barbeiro enquanto vai  tosquiando, fazendo a barba, lavando a cabeça e tudo o mais a que o rechonchudo cliente tem direito. Uma história leva a outra. Então, nesse mesmo Alentejo pachorrento, o nosso barbeiro em passeio com a mulher e uma amiga desta, também encontrou uma vaca: “Tava a minha mulher e a amiga, tás a ver, as gajas cagadas de medo, e o cabrão, tás ver da vaca, não saía do caminho. Tentei ultrapassar a porra da vaca, mas ela pôs-se a correr pela estrada fora, tás a ver. Para te dizer, tás a ver, que no Alentejo as cabronas das vacas vai lá vai. Depois lembrei-me de buzinar e foi quando a filha duma grandessíssima putona, borrada de medo, correu para a margem e eu pude continuar a viagem, tás a ver.” O tema repetia-se ad nauseam e os dois comparsas pareciam colher dele a história mais fabulosa das suas vidas.