quarta-feira, agosto 26, 2015

Quarta, 26.
Uma manhã abafada, sentámo-nos Alice e eu, no tablado que o namorado construiu sobre o lago coberto de palmeiras, e deixámo-nos resvalar em confissões. Percebi que com ela podia soltar o coração e durante pelo menos duas horas maravilhosas, trocámos confidências e amargos de alma. Uma total sintomia de afectos cruzou os nossos caminhos e um entendimento da vida encontrou nas palavras a mão amiga que reconforta e tem na ponta dos dedos o parecer que ajusta a emoção e reorienta os sentimentos. Tudo acompanhado de um sorriso desenhado no seu rosto bonito que anima, estreita a percepção e dá confiança no futuro. Alice habituou-se a encontrar em si o necessário na prossecução do caminho que traçou. E não desanima diante dos obstáculos. O homem chegou tarde e foi uma bênção do céu. Todavia, ela já estava habituada a estar só, a contar apenas consigo, a enfrentar os fantasmas e a vencê-los. Como o pai que com noventa anos, uma semana antes de morrer, ainda trabalhava a terra que hoje ela trata e “trazia tudo num brilho”. A médica que a segue, dá-lhe invariavelmente a mesma sugestão: “continue a tratar do campo”. A única filha que tem, não gosta do campo e ela sabe perfeitamente que após a sua morte a quinta que tanto adora, partirá em venda. “Enquanto cá andar, sou feliz aqui. O que acontecerá depois da minha morte, não me importa.” Mulher de armas, esta amiga.

         - Estava curioso em ver as obras do mercado central da cidade que a câmara levou mais de um ano a fazer. Pode-se dizer que a montanha pariu um rato e um xuxo caro. O que resulta do investimento, é o empedrado central da praça ao jeito lisboeta e nada mais. Podiam ter aproveitado para alargar as ruas que circundam, mas nem isso fizeram. As estruturas dos feirantes, são manhosas e nem um pouco de cor introduziram no ar. Resta o que há de melhor e nunca dali saiu: as pessoas, as frutas, os legumes como elementos ornamentais de vida e alegria a dignificar o espaço.

         - Como eu imaginei, os barbudos extremistas jihadistas começaram a destruir Palmira. Uma jóia da Síria, um registo da sua identidade e da sua história desapareceu em segundos. Dois mil anos de testemunho greco-romano morrem às mãos destes selvagens que os Estados Unidos e a Europa, nas suas hesitações e aproveitamentos, desconfianças e interesses geoestratégicos quanto a Bashar al-Assad, não souberam enquadrar. A Unesco fala em “crime de guerra”. Mas é a Beleza na sua expressão eterna que deixa os nossos corações e nos empobrece de humanidade.  

         - Gostava de ser como aquele casal que ali está frente a frente, sossegados, vazios, a tomar café. Não há neles senão silêncio, vida esvaziada de palavras, mas ainda assim perpassa entre eles um diálogo quedo que traduz a acomodação a um quotidiano de surdos-mudos, de algo esgotado, que paralisa, introduz nos gestos a lentidão que a atalaia da morte não disfarça. Um deles decerto morrerá primeiro e o que ficar vai recolher as sombras do que partiu e fazer delas a memória que desprende a saudade numa espera ensandecida murmúrios.    

         - Os franceses graças a três destemidos soldados americanos que  sexta-feira passada, no comboio Bruxelas-Paris, evitaram mais um atentado dramático, respiram de alívio; já os rapazes norte-americanos, aclamados como heróis, coube-lhes um final ao gosto da América brilhantemente aproveitado dos dois lados do Atlântico.