domingo, maio 21, 2023

Domingo, 21.

Nas minhas deambulações pela cidade, estando ontem sentado numa esplanada dos Champs Élysées, presenciei esta cena delirante: um vendedor de automóveis a tentar transaccionar um Peujeot a um africano. O curioso da história, é que o vendedor era igual aos que se vêem em Lisboa: bem vestido, barriga saliente, as chaves rodando entre os dedos, agressivo e amável, um pouco calvo. Os dois andaram tempos perdidos à roda da viatura, o vendedor argumentando, o negro fotografando tudo com o portátil. A dada altura quer ver o porta-bagagem; o cliente faz entrar um pequeno saco de mão provavelmente para se certificar que tem espaço para ele. Afasta-se, ronda o objecto dos seus sonhos e pede para ver o motor. Não parece perceber nada de mecânica, mas fotografa também o que se esconde sob o capot. Murmuram os dois um longo espaço de minutos, o africano parece não estar convencido, aponta uma amolgadela do lado esquerdo traseiro. Ficam os dois a olhá-la, o vendedor não pára de falar, desaperta e aperta o botão do casaco. O negro, sem dizer palavra, de súbito abandona o carro e segue caminho avenida abaixo. Furioso o vendedor entra no carro já sem casaco e vai no seu encalço. O que se seguiu já não vi porque o trânsito era muito.  

         - Almocei num restaurante que sempre frequento quando venho a Paris. Fica na Place de S. Michel e mudou de gerência. Antes os donos eram dois homens feitos; hoje são dois jovens imaturos. O que antes era francês, hoje é uma salada de coisa nenhuma, caro, atirado ao turista de chinelo. Em face existia a grande livraria Chez Gilbert que ocupava três andares espaçosos. O que vejo hoje é mais um hotel. Os livros foram transportados para o outro lado da rua, vendidos ao desbarato, como material em segunda mão. Foi lá que adquiri um livro de Jean d´Ormesson por... cinquenta cêntimos, outro de Montherlant por três euros, o de António Costa Gomes a um euro!! Assim vai a vida. Livros com centenas de páginas ao desbarato. Como vivem os escritores? 

         - Eu não visito Paris, estou em Paris.  

      - Missa na magnífica basílica de Saint-Denis. Antes café tomado no velho Khédive de tantas memórias, desde logo os anos em que a Annie presidiu à câmara;  os momentos com o Mário saboreados diante da Mairie, o autocarro que arrancava sempre ao sairmos de casa e depois no regresso... Hoje a imensa nave central estava quase cheia, com a curiosidade dos muitos carros carregados de compras à entrada, as crianças que brincavam por entre eles enquanto a missa decorria sem que ninguém se importasse. Dia de sol cheio, pouco quente, mas agradável. Estou à espera dos meus amigos que devem chegar a qualquer momento. Acabou-se a tranquilidade da casa, a solidão benfazeja, a intimidade comigo no grande pátio onde o silencio serpenteia.