sexta-feira, maio 19, 2023

Sexta, 19.

Ontem passei uma parte do dia no bairro do Marais agora transformado completamente numa enorme zona para piões. Vim a pé desde Châtelet, Hôtel de Ville, rue Rambuteau, Temple, Saint Antoine, e mais à frente Place des Vosges. A manhã não estando quente, transpirava doçura, imponderação, frescura. A dada altura entrei na igreja Notre-Dame des Blancs-Manteaux para admirar os luminosos e excelentes vitrais. Celebrava-se a missa das onze e deixei-me ficar hipnotizado pelos cânticos, as orações, as vozes dos fiéis e dos sacerdotes em número de quatro. Dei-me conta então que a versão do latim nem sempre se fez do mesmo modo e muitas palavras e até expressões são diferentes na tradução francesa e portuguesa. Fiquei até ao fim da missa. Gostei particularmente da preocupação dos celebrantes quando no final do ofício, ficaram um bom momento em silêncio, em introspecção com os fieis. Só então fomos convidados a ir às nossas vidas. Se falo nisto, é para comparar com as missas apressadas, vaidosas, impertinentes do sacerdotal português. As padres que vi, eram humildes, fervorosos, pouco se importando com o que se passava para além do Santo Sacrifício da Missa, centrados na fé, compenetrados no fervor da oração. Não eram profissionais, eram pastores de um rebanho onde cabem todas as raças, pobres e ricas, irmanadas sob o mesmo manto de Jesus Cristo.  

         - Estando perto do restaurante onde costumo ir, desandei uma série de ruas para trás, e fui sentar-me na mesma mesa de há dois anos. Estava tudo na mesma, apenas a esplanada havia crescido, como cresceram – e bem – os preços. Ao célebre “Menu-formule” foi-lhe suprido quase tudo e o que resta tem o mesmo preço de antigamente onde cabia entrada, prato e sobremesa. Isto tratando-se de um restaurante tipicamente francês, porque os grandes cafés, bistrôs e brasseries tradicionais e belíssimos, com as cadeiras de duas cores em palhinha ou cana sintética, entregaram-se a vulgaridade da cozinha dita internacional. Todo o Saint-Michel que hoje atravessei e onde almocei, está convertido em comida barata e rápida: sandes, cerveja, pequenos croquetes. Esta merda que a sociedade democrática criou com as viagens de massa, transfigurou uma cidade que outrora se orgulhava da sua cozinha e não cedia às facilidades das coisas vulgares e baratas. Como esta gente que se desloca como baratas tontas não tem cheta, tiveram que se render a imundície dos produtos maus e cheios de colesterol, molhos e picantes. É disto que estes novos viajantes gostam e a cozinha francesa média e boa rendeu-se.  

         - Há, todavia, um charme onde cabe a placidez da vida. Assim que acabei de almoçar, pedi para me servirem o café na esplanada. Precisava de descansar, de pensar, de olhar quem passava e imaginar as suas vidas, públicas e privadas. Não saí desiludido – oh, não! – o bairro com a sua animação e frequentação de gente sensível, fez-me ficar por mais de uma hora em contacto com um mundo onde os olhares, os sorrisos, as mãos e os trejeitos corporais dialogam connosco, desafiam-nos, interpelam-nos, imploram-nos até... um segundo pleno onde cabe todo o amor que o vazio expulsa. 

         - Falei que o sol finalmente deu um ar de sua graça. Logo as lagartixas francesas se expuseram, descontroladas, ao mavioso suspiro do seu raio. Vou a caminho da casa onde viveu Victor Hugo que a França celebra este ano os seus 120 anos. Não entro hoje; só amanhã se não se importam. 

O jardim da Place des Vosges