segunda-feira, maio 29, 2023

Segunda, 29.

Francis, ainda mal cheguei, já me está a telefonar.  Lamenta não nos termos encontrado, não termos ido juntos à Comedie Française ver o Proust, e diz que, dada a sua idade, talvez não nos voltemos a ver. Contesto. Contra-argumenta que trabalha imenso porque aceitou fazer parte de uma comissão aos Jogos Olímpicos; insiste que volte a Paris no próximo ano por essa altura porque tenho entrada gratuita e oficial nas modalidades que quiser. Não me ouve quando lhe digo que estive com uma bronquite que me pegou a Laure e não queria passá-la a ele. De facto, recebi dezenas de apelos telefónicos e não atendi porque não desejava contaminá-lo com a praga que levou tempo a passar.  

         - Só desapareceu quando a Annie e o Robert foram passar quatro dias num rally a norte de Paris. Então, todas as manhãs, abria portas e janelas, no primeiro andar e rés-do-chão, de forma a fazer circular o ar. Aquela gente vive num casulo de vírus, numa atmosfera pesada, malsã, porque não querem perder os tostões que gastam a aquecer a casa. A pobre da Laure já vinha com a doença e no Porto impus-me para que tomasse pelo menos um xarope. Porque para o Robert, nada tem importância e tanto a filha como a mãe, é frequente andarem nos limites porque sua excelência diz que assim é todos os anos e de nada vale tomar fármacos. Mesmo quando é atingido como foi o caso sendo o último a tossir como um desalmado.  

         - Ante o avanço da direita, Sánchez empreende fuga para a frente, e convoca eleições legislativas antecipadas. Pobrecito. Tendo melhorado bastante nestes últimos dois, três anos, pelo menos mais e melhor que o camarada Costa, não chega para travar a direita que está em folguedo por todo o lado. Os povos, fartos das mentiras, dos trocadilhos e da corrupção da esquerda, tentam mudar o rumo da história servindo-se da democracia. Espero que em Espanha como em Portugal, aconteça o que aconteceu em França onde os franceses erradicaram por muitos e largos anos o socialismo. 

         - Enormes dificuldades em retomar o quotidiano. Não é cansaço, é apatia. O rigor que é o meu desnorteia-me, abate-me, neutraliza-me. Se preciso de ritmos certos, também necessito de movimento, reflexão, horas a pensar parado diante do tempo, como se este fosse movido pelos pensamentos e eu o pudesse sustê-lo no intervalo entre dois sentimentos, entre dois suspiros, entre duas recordações.  

         - Precisava de arranjar coragem para narrar o que me aconteceu, em Paris, durante duas semanas seguidas sem folga um só dia. As faltas – como a Igreja diz – foram quotidianas lembrando os meus vinte anos desabridos. Que monstruosa surpresa! Que força da natureza se veio juntar a mim para acordar todos os sentidos, todos os corpos adormecidos no meu corpo, todas as horas voltadas do avesso, num hino à vida pleno da liberdade que só o corpo desbravando o tempo pode oferecer. O passado e o presente estiveram inteiros num hosana inqualificável e maravilhoso, o tempo esteve sempre parado, cercando-me, abençoando os movimentos, os langores, os segredos que eu julgava olvidados. Quebrado de haver estado intensamente com os seres que marcaram o meu destino e abriram nele a luz que ainda hoje me ilumina,  me rendi à noite e puxei o manto das estrelas para cobrir o corpo estafado.