sexta-feira, maio 12, 2023

Sexta, 12.

Pedi ao Robert me acompanhasse rue Vivienne, no centro de Paris, para me servi de guarda-costas. Com efeito, desfiz-me hoje de mais uma joia de família, traduzida em 1400 euros. Ninguém imagina a satisfação que isto me causa. Partir sem nada, sem deixar rasto de valor algum, salvo o da amizade, do convívio, das acções que levaram aos outros conforto e paz. O homem que nos recebeu, encontrámo-lo na rua, à porta de seu modesto estabelecimento. Era uma personagem de romance e foi por isso que lhe passei o bijoux em ouro para as mãos. Judeu, baixo, redondo de corpo, olho perspicaz, logo nos fez entrar no seu escritório minúsculo, onde arrumou as grandes pernas do meu amigo, mais o corpo sedutor deste que aqui anota estas impressões e trancou a porta à chave. Como lhe disse que era português, falou de Belmonte sem que algum dia lá tivesse ido. Eu conheço a terra e entrei numa conversa que o animou. De cada vez que eu utilizava a palavra judeu, ele rectificava para israelita, mas sem censura ou azedume. Depois fez pela vida, propôs um preço, observou a peça com os grandes óculos de aros negros, redondos, que pareciam os olhos de águia. Vendo-me hesitante, diz-me que ficam a seu cargo os impostos e mais tarde esta impressionante razão pela qual lhe vendi a peça: pagava-me em dinheiro. (Lembrei-me do seu colega, uns quantos metros adiante, a quem há dois anos vendi três libras de ouro e tive que peregrinar seis meses para que o dinheiro entrasse na minha conta.) Arrumado o assunto, deixou-nos por breves instantes para regressar com um maço de notas de vinte euros que contou na nossa frente. A dada altura engana-se a meu favor em cem euros. Digo-lhe que não quero o que não me é devido, e ele voltando a calcular a soma, satisfeito, diz-me que tenho razão e passa-me para as mãos o maço de vinte euros. No final, perguntou-me se não tenho mais nada para vender; disse-lhe que sim mas para a próxima. Estendeu-me o cartão de visita, explicando-me que não devo em caso algum telefonar-lhe, se precisar o procure no seu escritório. 

         - Apesar desta esgotante viagem, há uma nota que sobreleva de tudo e mais alguma coisa: o ritmo quase diário no romance. Não houve um único dia que não tivesse juntado umas linhas e, às vezes, uma página inteira. 

         - O frio e a chuva continuam. Não estou melhor da tosse e tenho estados de tremura. No fundo de mim, estende-se a revolta contra o Robert que, não obstante os meus avisos, aligeirou a dimensão sofredora da Laure. Esta, sendo inepta mental, não controla as emoções, os estados de alma, a simples actividade do dia-a-dia. Vive num mundo só dela, fala com fantasmas à nossa frente, gesticula, tem laivos de loucura, apaixona-se por grandes cantores franceses e americanos, mas escolhe-os mal – são todos homossexuais. Sem falar nos desastres fisiológicos, na incontinência, como fazer tudo sem prevenir em qualquer lado e deixar um rasto nauseabundo. Confesso que não esperava encontrar este estado de degradação na mãe e filha. Se soubesse nunca teria aceitado recebê-los e a grande viagem que se seguiu foi extremamente penosa para mim. E para Robert que vive com este drama quotidiano.  

         - Ia-me a esquecer de Salamanca. Passámos um dia inteiro e uma noite, por proposta minha, saudoso de admirar a beleza da Plaza Mayor. Decorria a Feira do Livro e a majestosa arquitectura em estilo barroco, quando as luzes se acenderam estando nós a jantar num dos muitos restaurantes que a cercam, ouviu-se o ribombar de palmas que saudavam o acontecimento. Porque é disso que trata. É na realidade um acontecimento, um fascínio intraduzível, poder olhar aquela harmonia sob o céu azul de uma noite quente, concebida pelos arquitetos Alberto e Nicolás Churriguera. O génio castelhano está inteiro na pedra de granito e nos medalhões dos soberanos e santos sobrepostos. No lado norte, onde está a câmara da cidade, vê-se o campanário ladeado por quatro figuras alegóricas. A cidade parece ter saído dela, estendendo-se a partir aquele quadrado imenso, toda com a mesma cor, a mesma solidez, a mesma simetria. 

         - Sempre gostei de Espanha, dos espanhóis. Gosto de veranear pelas suas ruas onde os automóveis não entram, de assestar o olhar sobre o povo de uma dignidade austera, de uma personalidade que se impõe pela rigidez de conceitos, de tradições, da fimbria de carácter que os faz únicos numa Europa americanizada. Eles conservam com orgulho as tradições, pecam e confessam-se com a mesma convicção, são alegres, vivem a vida com intensidade e regozijo. Se tivesse que escolher um país para viver, seria Espanha. Em qualquer quer lado, da aldeia recôndita, à cidade opulenta, porque na base de tudo está seu povo vertical.