quinta-feira, outubro 22, 2015

Quinta, 22.
Outro dia Annie arrastou-me para um almoço no Flore. Ao todo éramos oito pessoas em torno de duas ou três mesas encostadas umas às outras naquela atmosfera que fez cantar uma plêiade de escritores que reinaram omnipresentes até ao fim do século passado. A reunião aconteceu porque o grupo que tinha vindo ao nosso encontro, pertencia a um clube de ricaços apostados em fazer a diferença montados em automóveis antigos que custam os olhos da cara. Durante duas horas não se falou de outra coisa que de marcas, modelos e adaptações, reconstruções, velocidades e rallys. Eu que não percebo peva e não me interesso minimamente por uma actividade de gente ociosa, sendo o carro para mim uma forma de me facilitar a vida, escutei educadamente aquele brouhaha simpático, elegante, discreto sob um fundo fino de fidalguia lânguida e sub-repticiamente cobiçosa. Felizmente que o célebre restaurante-café é hoje uma atracção mundial e nele desagua uma multidão de turistas atraída pela fama dos anos 40 e 60 que ali fica horas à espera de ver chegar um Sartre moderno, uma Beauvoir drogada, um Hemingway alcoólico. Comeu-se maravilhosamente, bebeu-se do bom e do melhor, a sobremesa foi de estalo e quando saí senti as pernas tremer, levitando um pouco acima das suas forças. Robert precipitou-se para trazer até nós o carro onde me afundei, satisfeito. Chovia.        

         - Os senhores e as damas, puseram-se de acordo para afirmarem que eu tenho um ar de gentleman inglês. Dois deles que já tinham estado várias vezes no Norte de Portugal em rallys, acrescentaram que eu nem pareço português. Annie estava de acordo com eles e engrossou os epítetos dizendo que eu sou especial. O grupo concordou e eu desfiz a unanimidade declarando que especial só o coração. Por fim, o mais amável possível, o clã descansou-me: “Você é simpático e tem muita classe.” Enfim, ao menos isso.

         - Sinto-me nas nuvens. Aligeirado da caixa do tricot moderno que é o computador, esquecido do romance, sem nada para escrever, solto, olá, nas asas do dolce far niente, passei a dormir melhor e a voar por cima da vida de escravo que foi a minha até agora. É verdade que de vez em quando, digo de mim para mim, que devo começar a revisão de Matmatu, mas logo sinto um ligeiro desfalecimento, um arrepio nos sentidos que me tolhe, me submete, me subjuga num encontrão para lá do consentâneo que me equilibra e me afasta das drogas leves que me mantêm sereno enquanto escrevo. A vida sem a escrita é insuportável, mas com ela é doentia, obsessiva, desastrosa. Viver por um instante nesse desfiladeiro, nesse abismo de vazio, e depois voltar à superfície mais sólido, mais forte, mais apto para enfrentar a solidão e o silêncio que nos traz toda a dimensão humana capaz de se oferecer o sacrifício da Arte consubstanciado na dor que dilacera, atormenta, fragiliza e nos torna um ser recluso numa cadeia de nervos pelúcidos, as emoções à for da pele, figura frágil que a todos mete dó, abandonado aos seus fantasmas, prisioneiro deles, na anfractuosidade da realidade e da ficção.
Que bizarros somos nós os que entregamos a vida à escrita!


         - Afinal, na balbúrdia que foi a peregrinação a Meca, não morreram apenas mais de uma centena de peregrinos, mas 2 mil e cem. A Arábia Saudita tem culpas no desastre. Talvez o soberano que a dirige pense que foi bom para os infelizes que assim alcançaram o paraíso por direito.