Quinta, 22.
Outro dia Annie arrastou-me para um
almoço no Flore. Ao todo éramos oito pessoas em torno de duas ou três mesas
encostadas umas às outras naquela atmosfera que fez cantar uma plêiade de
escritores que reinaram omnipresentes até ao fim do século passado. A reunião
aconteceu porque o grupo que tinha vindo ao nosso encontro, pertencia a um clube
de ricaços apostados em fazer a diferença montados em automóveis antigos que
custam os olhos da cara. Durante duas horas não se falou de outra coisa que de marcas,
modelos e adaptações, reconstruções, velocidades e rallys. Eu que não percebo
peva e não me interesso minimamente por uma actividade de gente ociosa, sendo o
carro para mim uma forma de me facilitar a vida, escutei educadamente aquele brouhaha simpático, elegante, discreto
sob um fundo fino de fidalguia lânguida e sub-repticiamente cobiçosa. Felizmente
que o célebre restaurante-café é hoje uma atracção mundial e nele desagua uma
multidão de turistas atraída pela fama dos anos 40 e 60 que ali fica horas à
espera de ver chegar um Sartre moderno, uma Beauvoir drogada, um Hemingway
alcoólico. Comeu-se maravilhosamente, bebeu-se do bom e do melhor, a sobremesa
foi de estalo e quando saí senti as pernas tremer, levitando um pouco acima das
suas forças. Robert precipitou-se para trazer até nós o carro onde me afundei, satisfeito.
Chovia.
- Os senhores e as damas, puseram-se de acordo para afirmarem que eu
tenho um ar de gentleman inglês. Dois
deles que já tinham estado várias vezes no Norte de Portugal em rallys,
acrescentaram que eu nem pareço português. Annie estava de acordo com eles e engrossou
os epítetos dizendo que eu sou especial. O grupo concordou e eu desfiz a
unanimidade declarando que especial só o coração. Por fim, o mais amável possível,
o clã descansou-me: “Você é simpático e tem muita classe.” Enfim, ao menos
isso.
- Sinto-me nas nuvens. Aligeirado da caixa do tricot moderno que é o
computador, esquecido do romance, sem nada para escrever, solto, olá, nas asas
do dolce far niente, passei a dormir
melhor e a voar por cima da vida de escravo que foi a minha até agora. É verdade
que de vez em quando, digo de mim para mim, que devo começar a revisão de Matmatu, mas logo sinto um ligeiro
desfalecimento, um arrepio nos sentidos que me tolhe, me submete, me subjuga
num encontrão para lá do consentâneo que me equilibra e me afasta das drogas
leves que me mantêm sereno enquanto escrevo. A vida sem a escrita é
insuportável, mas com ela é doentia, obsessiva, desastrosa. Viver por um
instante nesse desfiladeiro, nesse abismo de vazio, e depois voltar à
superfície mais sólido, mais forte, mais apto para enfrentar a solidão e o
silêncio que nos traz toda a dimensão humana capaz de se oferecer o sacrifício
da Arte consubstanciado na dor que dilacera, atormenta, fragiliza e nos torna um
ser recluso numa cadeia de nervos pelúcidos, as emoções à for da pele, figura
frágil que a todos mete dó, abandonado aos seus fantasmas, prisioneiro deles,
na anfractuosidade da realidade e da ficção.
Que bizarros somos nós os que entregamos
a vida à escrita!
- Afinal, na balbúrdia que foi a peregrinação a Meca, não morreram apenas
mais de uma centena de peregrinos, mas 2 mil e cem. A Arábia Saudita tem culpas
no desastre. Talvez o soberano que a dirige pense que foi bom para os infelizes
que assim alcançaram o paraíso por direito.