Quarta, 28.
Pela manhã cedo, subi a Montmartre para
reservar uma noite no convento das irmãs que velam pela basílica do Sacré
Coeur. Há uma eternidade que não escalava (é este o termo correcto) a colina
sagrada dos artistas, não sendo eu um turista. A penúltima foi para jantar em
casa de Jean Le Brun que morava no sopé do morro num apartamento confortável; a
última com o Eugénio num dia com temperaturas abaixo dos 15 graus. Hoje o sol
que reinou magnificente na grande passeata que me levou vadio por todo o lado e
terminou no marché aux puces de Clignancourt. Almocei (solitário) no Cabaret o
restaurante ainda hoje frequentado por actores, escritores e políticos e que
fica na Rue Norvins a dois passos da praça principal. Nas paredes retratos a
perto e branco dos artistas de antanho e a cores da plêiade actual. Atmosfera
simpática, pessoal solícito, comida a condizer. Bem aconchegado, desci a
penates para entrar num dos mais antigos centros comerciais: as galerias Saint-Pierre.
Conheci-as há mais de vinte anos com a Annie que lá costumava ir comprar o que
lhe fazia falta e não só ela como os decoradores teatrais, actores, encenadores
e assim. Um mundo à parte num bairro atapetado de turistas. Não há velha
gaiteira ou pobre armada ao fino, que lá não vá adquirir os adornos pessoais ou
para casa. O ambiente não evoluiu e o que observei foi a trama densa de um
tempo voltado sobre si próprio, remoendo recordações, explorando materiais,
dando vida a novas gerações que reclamam os mesmos botões, metros de tafetá,
sedas amareladas, chitas, rendas, fechos éclair, pedaços de bombazinas, atoalhados,
veludos, popelinas, turcos, damascos, ténues
de dance, num imenso patchwork onde nos perdemos, nos rimos, tocamos,
admiramos do fundo do espanto o que se vende como as gaiteiras compradoras. Daí
o 85 levou-me ao puce em dia de
descanso. Procurava um boquinista, mas não o encontrei e estando por lá
deambulei pelas ruas em dia de feira cobertas de tendas e passantes, hoje às
moscas. Terminei a tarde num bistrot não só para descansar, como para uma
cerveja fresca porque a tarde fora de Verão. Como sardinha enlatada, entrei no
metro que me devolveu à procedência. O dia estava ganho, a noite era uma
incógnita.
Sacré Coeur ao fundo da vegetação outonal |
Piscina de botões galerias Saint-Pierre |
O amor louco não atinge só os adultos |
- A vida recompõe-se não para refazer o passado, mas para enfrentar o
futuro.
- Eu
não vejo aqui nenhuma cadeia de televisão interromper os noticiários, os
programas culturais ou de diversão para encharcar os olhos ou enfiar pela goela
abaixo anúncios publicitários na forma de pipocas, como se faz no petit pays onde toda a gente se está
marimbando para o espectador, perdão, consumidor.