terça-feira, outubro 20, 2015

Terça, 20.
Levantámo-nos cedo para fazer a viagem até aqui onde chegámos pelas dez horas da manhã. Eu vim porque desejo ver a recuperação da velha viatura que Robert levou pelo menos uns cinco anos a pôr a funcionar e, mal me desembaracei da minha mochila, corri ao centro de Cambrai para o primeiro café na praça principal, frente à câmara, descer depois na direcção da célebre catedral de Notre-Dame de Grâce à livraria que tem portas abertas uns quantos prédios mais abaixo. Aqui como em Paris, os termómetros andam pelos 0 graus à noite e oito de manhã. Acontece que, como a chauffage só deve ser ligada a partir do dia 15, até lá rapa-se o frio costumeiro. De pouco adianta queixar-me à Annie ou ao marido, ambos empurram de um para outro a decisão de só termos aconchego climatérico na data oficial.  


         - Retomo estas parlapatices depois de um interregno grande. Quis consagrar-me por inteiro à finalização do romance que aconteceu dia 13, na casa da Foz, onde estive uns dias a descansar, com curtos passeios pela Baixa do Porto. Saí completamente esgotado, crente e descrente, submerso num estado a tocar a depressão e com a firme convicção de que se voltasse a lê-lo ainda teria muito para corrigir. Escrever um romance é trabalhar como escravo e sentir na pele as agruras, mágoas, receios, incertezas da dureza de uma arte que nos consome até à medula e nos isola dentro de uma vida que tanto nos empolga como nos provoca a morte antecipada. Durante o tempo da sua criação, ele toma conta dos nossos dias, das horas, dos minutos, das noites, subjugando-nos, esvaziando-nos o cérebro, os nervos, despindo-nos o colete de trevas que somos coagidos a usar para que nada escape à fúria das palavras abandonadas ao atropelamento que as leva de emoção em emoção, de diálogo em diálogo, de sentimento em sentimento, de raiva em raiva, de alucinação em alucinação, e mais não digo porque ainda não saí desse gouffre onde vivi em completa entrega dois anos e meio. Ficou-me a pele nele. Literalmente.