Terça,
20.
Levantámo-nos
cedo para fazer a viagem até aqui onde chegámos pelas dez horas da manhã. Eu
vim porque desejo ver a recuperação da velha viatura que Robert levou pelo
menos uns cinco anos a pôr a funcionar e, mal me desembaracei da minha mochila,
corri ao centro de Cambrai para o primeiro café na praça principal, frente à
câmara, descer depois na direcção da célebre catedral de Notre-Dame de Grâce à
livraria que tem portas abertas uns quantos prédios mais abaixo. Aqui como em
Paris, os termómetros andam pelos 0 graus à noite e oito de manhã. Acontece
que, como a chauffage só deve ser
ligada a partir do dia 15, até lá rapa-se o frio costumeiro. De pouco adianta
queixar-me à Annie ou ao marido, ambos empurram de um para outro a decisão de
só termos aconchego climatérico na data oficial.
- Retomo estas parlapatices depois de
um interregno grande. Quis consagrar-me por inteiro à finalização do romance
que aconteceu dia 13, na casa da Foz, onde estive uns dias a descansar, com curtos
passeios pela Baixa do Porto. Saí completamente esgotado, crente e descrente,
submerso num estado a tocar a depressão e com a firme convicção de que se
voltasse a lê-lo ainda teria muito para corrigir. Escrever um romance é
trabalhar como escravo e sentir na pele as agruras, mágoas, receios, incertezas
da dureza de uma arte que nos consome até à medula e nos isola dentro de uma
vida que tanto nos empolga como nos provoca a morte antecipada. Durante o tempo
da sua criação, ele toma conta dos nossos dias, das horas, dos minutos, das
noites, subjugando-nos, esvaziando-nos o cérebro, os nervos, despindo-nos o
colete de trevas que somos coagidos a usar para que nada escape à fúria das
palavras abandonadas ao atropelamento que as leva de emoção em emoção, de
diálogo em diálogo, de sentimento em sentimento, de raiva em raiva, de alucinação
em alucinação, e mais não digo porque ainda não saí desse gouffre onde vivi em completa entrega dois anos e meio. Ficou-me a
pele nele. Literalmente.