Quinta,
27.
Pelas
quatro e trinta e cinco da noite, sou acordado de um sonho que estava a viver,
com a mensagem do Filipe que me anunciava, triunfante, o nascimento de uma
menina que irá fazer companhia ao filho. Sucede que o Filipe faz anos hoje e
logo a bebé nasce no mesmo dia e mês do pai. Coisa surpreende e decerto
positiva para ambos. Acontece que o sonho foi interrompido quando eu discutia
com um editor que acabara de recusar O
Rés-do-Chão de Madame Juju sob pretexto de que “o romance tem períodos
muitos longos e hoje os leitores não gostam de se cansar com esse tipo de
escrita”. Agora que anoto este desvario do meu suposto editor, lembro-me de
Goethe que dizia ao seu impressor que expurgasse o seu trabalho, mas não
suprimisse muitas vírgulas. Bom. Como acho que nada acontece por acaso e um
livro é de certa forma um filho que pomos no mundo, pressinto que há em tudo
isto duas auroras de vida a germinar. Sejamos construtivos.
- A propósito de Goethe, vem Novalis. Estou
completamente rendido ao mundo e à imaginação
do grande poeta do século XVIII, contemporâneo de o autor de Os Sentimentos do Jovem Werther, ambos
comungantes do Romantismo. Talvez o segundo com mais substância no tocante à Natureza
e na concepção do homem enquanto sujeito e objecto. Em Henri d´Ofterdingen, Novalis parece impregnado da presença divina e
arrasta-nos para um universo irreal com aquela delicadeza que, tocando o real,
se deixa levar na exaltação que consubstancia o pensamento numa realidade que
só pode existir enquanto capacidade de se esgueirar para o mundo de sonho onde
o sonho é realidade. É, aliás, ele que nos adverte: “Le monde doit être tel que
je le veux. Le monde a une capacité originel de se conformer à ma volonté.” Novalis,
dizia Frèdéric Schlegel numa carta que lhe dirigiu em 2 de Dezembro de 1798,
quando andava determinado em fundar uma religião nova: “O meu papel será o do
apóstolo Paulo, o seu será o de Cristo.” E de facto, Novalis como Espinosa, têm
a Natureza como princípio da identidade de Jesus Cristo e através dela pode o
homem irmanar-se no sentido da transparência e dos sentimentos puros. Cito uma
vez mais o poeta: “Le monde supérieur est plus proche de nous que nous ne le pensons
ordinairement. Ici-bas déjà nous vivons en lui et nous l´apercevons,
étroitement mêlé à la trame de la nature terrestre.” Com Novalis entramos num
cosmo de beleza, de misticismo e poesia. A criança nunca deixou o autor de Hynnes e é com ela que ele nos dá o
braço e nos leva por horizontes lavados de inocência e voluptuosidade. É tudo
tão extraordinário, tão fora do real, que nada escapa à nossa sensibilidade e
tudo nos foge para abismos de eternidades que não ousamos tocar. Novalis morreu
cedo, ao contrário de Goethe. Um com 52 anos, outro com 83. Ambos marcaram um século,
cada um à sua maneira. Fizeram uma revolução sem armas, mas armados dos
sentimentos e da descoberta do homem enquanto sonho e realidade.