segunda-feira, dezembro 06, 2021

Segunda, 6.

Este ano que em breve se despede, deixa-me o amargo de constatar que perdi o entusiasmo criativo. Foi nisso que pensei com dor ontem ao serão, diante do fogo que ardia entusiasmado na lareira. Não sei quanto tempo fiquei a interrogar a chama e o silêncio que em torno da sala pesava como uma ausência querida que tinha falecido. Tenho praticamente o primeiro capítulo de O Matricida concluído, mas não ouso prosseguir por achar que a tarefa é hercúlea para um fraco romancista. A complexidade do enredo, toda a trama que o cerca de cariz psicológico, é aventura demasiado para quem resvala ante o sobressalto da tarefa. Vou pois desistir com um peso medonho na consciência por não haver reunido forças e entrega a um trabalho em que acredito e sobre o qual me devia ter dedicado até à última gota do meu sangue. Doze meses passaram em que fui por assim dizer tateando as páginas derramadas de incerteza, titubeadas, exigindo de mim as forças que não possuía, a entrega que o cérebro recusava, o cansaço prostrado diariamente logo na primeira linha, a ânsia de partir para Paris de forma a reconstituir-me, a estender-me numa outra forma de existência constituída do ruído que julgava ser necessário - eu que tanto adoro a solidão -, e tão pouca precisão tenho do movimento enganador em torno do progresso e da vida do comum dos mortais. Mal chegado, percebi que embarcara num engodo - comigo tinha levado o sofrimento solitário que não ousava (nem ouso) contar a ninguém. São pesos indizíveis, códigos secretos cujo enigma permanece secreto mesmo para mim que levo a existência a interrogá-los. Ficava horas infinitas no meu quarto a matutar. A concentração era tal que muitas vezes deixava de ouvir o movimento caseiro que em baixo não parava e com o qual julgava redimir-me da fadiga isolada de todo o ano. Mesmo quando passeava por Saint Germain dès Près ou Saint Michel, era em Semyon que cogitava, na sua infância, só, naquela terra fria dos confins da Rússia e, por momentos, chegava aos meus ouvidos a sua voz melodiosa de jovem a pespontar da infância para a adolescência. Contudo, ó inquietação incontável, nem uma única vez ousei pôr os olhos no manuscrito que tinha comigo! Inacreditável! Tristeza incomensurável! Mistério de dois mundos separados pelo silêncio e a privacidade do seu criador! Daí, com carências urgentes do labor da escrita, atirava-me a este diário como tábua de salvação e prodígio criativo que supunha imenso e também à leitura de Toute Ma Vie que me salvou de me arremessar ao desfiladeiro dos dias de profunda e íntima devassidão, com a hecatombe de imagens e cenas indecentes a impregnarem as minhas noites. Depois, um certo dia, começou a aflorar à minha mente uma história com tal nitidez, que de rompante abri um documento com este título: A Camisa de Seda. Para todo o lado aonde ia, o meu cérebro ia construindo a pouco e pouco pequenos instantes de uma família, com lampejos dolorosos bizarros, coisas diabólicas que são familiares a qualquer lar, e eu passei a anotar no meu iPhonne todos esses filamentos de uma precisão incrível. A file, quando deixei Paris, tinha já duas páginas de apontamentos. Aqui chegado, tentei abraçar os dias que não vivi, entreguei-me ao trabalho (leve) da quinta, fui a Lisboa, estive com amigos, mas qualquer coisa se tinha ausentado e outra tomado o lugar da que partira. Estupefacção. Uma semana e meia depois de ter voltado, mudei o título para Os Forretas – e foi tudo. Ou será tanto que vou ter o próximo ano desassossegado de trabalho? Deus permita.