terça-feira, dezembro 21, 2021

Terça, 21.

Eu gosto de perceber o que vai na cabeça das gerações que me sucedem. Daí que tenha lido com atenção a entrevista que João Ferro Rodrigues deu ao Público há dias a propósito do livro que escreveu com a pretensão de dar resposta como rebentar a bolha social em que ele e os da sua geração vivem. Que dizer?! Desde logo a minha desconfiança quando observo um desejo de bem fazer desdobrado num discurso que é quase só uma atitude intelectual, com largo espectro a esbarrar na própria acepção do modo de viver pessoal. Bárbara Wong, a jornalista, bem se esforça por o trazer à realidade, mas Ferro Rodrigues encosta-se às expressões (inglesas, naturalmente): baby boomers, search inside yourself, background que hoje definem uma geração inteligente e culta, portanto, preocupada com as questões sociais, os bairros degradados, as famílias divididas, a indiferença dos jovens ao outro, o crescente aumento do “Eu” enquanto ilha reservada aos bafejados da vida, etc., etc., como se vivêssemos ainda no tempo do fascismo e os 40 anos de democracia tivessem acrescentado mal ao mal que vinha de trás. Não vou dizer que aquilo são rodriguinhos e falácias típicas de menino nascido em seio abastado, mas a sua consciencialização deixa muito a desejar. Lembra-me um pouco aqueles católicos apostólicos quando afirmam: olha para o que eu digo e não para o que eu faço. As suas propostas não são originais como a que propõe campos de férias para jovens de onde ao fim de três meses saiam mais esclarecidos e, como direi, humanizados. Esse período deveria ser pago e nele tinham de conviver todas as classes sociais, pobres e ricos, letrados e analfabetos, porque ele entende que é de confronto que sairá o futuro cidadão apto a enfrentar o destino. A jornalista, sempre atenta, contra-argumenta que isso já a Igreja faz com os acampamentos de Escuteiros; o homem de negócios e liberal insiste em rebentar a bolha obrigando os jovens ao retiro cívico. As contradições ao longo da entrevista são mais que muitas, como aquela que Bárbara, excelente de atenção, lhe faz notar que ao apregoar a escola pública como meio de evitar a acumulação de bolhas, ele tem as filhas no privado e elitista Liceu Francês Charles Lepierre. Mas o nosso moralista habilita-se a voos mais altos e pretende banir “a comunidade dos sozinhos”. Para isso cita Aristóteles e enfrenta os nossos dias com estas palavras: “Nós somos uma espécie que triunfou pela nossa capacidade de socialização e de empatia com o outro.” Apetece citar-lhe Witold Gombrowicz: “O “eu” não é um obstáculo no convívio com as pessoas, o “eu” é aquilo que elas desejarem.” E acrescenta: “No entanto, cuidado para que o “eu” não seja contrabandeado como mercadoria proibida. O que não suporta o “eu”? Meias-medidas, receio, acanhamento.” O escritor polaco sabe do que fala. Sofreu no corpo a recusa do “eu” no período estalinista. Quanto a mim, quem nos faz colectivos é o silêncio que carrega o “eu”. É através dele que o outro toma a dimensão do colectivo. Não podemos ser colectivos e, portanto, solidários sem a extraordinária dimensão do “eu”. Na base de tudo isto está o egoísmo e esse é maior nos que vivem em família. Terminaria, caro João Ferro Rodrigues: a utopia tem campo fértil no colectivo.  

         - Ontem estando na Av. da Igreja, dou de caras com o João Corregedor. Que festa! Logo me convidou para um chá numa pastelaria da avenida que a sua especialidade são croissants. Ficámos à mesa um tempo à conversa e, a impressão com que saio destes encontros, é que qualquer coisa de singular nos arrasta em cavaqueira amigável perpassada de uma extrema simpatia mútua. Somos diferentes no modo de ver o mundo, somos diferentes politicamente, somos unos no sentimento da grandeza que a memória trás ao convívio das ideias. 

         - Voltei já noite. Chovia como choveu o dia todo, copiosamente. A impressão com que fiquei mal vi aproximar-se o Fertagus, foi que algum alto dirigente da transportadora tem o hábito de espreitar este blogue. Hoje havia o dobro das carruagens e, embora o pagode assalariado fosse muito, ninguém esteve bafo com bafo – nada a ver com o que narrei a semana passada. 

         - Ganho o dia quando acordo já confiscado para a escrita – assim aconteceu hoje no encontro com o romance.