sexta-feira, dezembro 31, 2021

Sexta, 31

Se não desmoralizar, esta manhã foi excelente de trabalho no romance. Estou a ensaiar misturar na história pequenos flaches paralelos que foram o resultado da vida das personagens principais contados no alicerce da narrativa. Ocorrem ocasionalmente, saem ou entram para dar consistência a certas figuras. Um exemplo com este capítulo (o itálico corresponde ao que acabei de dizer).  

“O facto porém, é que o primeiro trabalho de Eugénia derreou-a a um ponto que a infeliz levou uns dias a recompor-se. Talvez Ana não o tivesse feito com esse intento, mas a garagem que todas as habitações possuíam e nenhum proprietário usava para a função que fora construída, estava transformada num enxurdeiro onde ratos e gatos vadios vinham pernoitar. Ana atribuía essa situação ao proprietário do terreno que um muro alto circunscrevia o beco, homem separado de uma atriz de cinema que o trocou por um trolha de rosto sorridente e físico tão harmonioso que ela o convenceu a entrar no concurso nacional do homem mais bonito e perfeito, tendo ficado em terceiro lugar, facto que a decepcionou e a ele deixou na mais completa indiferença. “Este físico que aqui vês, só a ti pertence e a mais ninguém.” A actriz gostou do que ouviu, mas nesse mesmo dia, em filmagens numa praia, conquistou um figurante de segunda categoria que respondeu de pronto nas dunas de areia branca e suave à lábia da estrela. O que se passou a seguir, não chegou à residência de Ana Boavida. A nota de rodapé que Leandro havia lido na página de cultura do jornal, limitava-se a dar a notícia sem qualquer comentário ou aditamento, simples faits divers para entreter a clientela de baixa condição que tem nestas ocorrências conversa para toda a semana.” 

Não há desenvolvimento nem mais notícia da actriz e do seu amante ou do figurante. Uma janela abriu-se e fechou-se com estrondo, mas os elementos surgidos por assim dizer do nada, podem mais tarde voltar a assomar como tantas vezes acontece na vida e constituírem confidências que fazemos a nós próprios, quando não lampejos que alimentam a consciência de charcos de luz. Há em cada um de nós uma memória que fica pendurada de uma moral, de um bater de coração, que tendemos a esquecer, mas que permanece como recordação e compõe uma espécie de murmúrio que atormenta e consome nas horas sombrias. Para além de nos pertencer através dos anos, mesmo que outro de nós tenha crescido e construído voos de dignidade que a sociedade convenciona, essas escapadelas de toda a ordem, para o bem e para o mal, são nossas, pertencem-nos enquanto seres livres, desarrumam o convencional, são transportadoras de um certo mistério que nos identifica como seres à parte, únicos como são todos os que medram da erva daninha das convenções sociais, e pela inteligência e sentido da remissão, alcançaram o estatuto de originais. Depois, enquanto criador, não posso saber se a actriz, o amante e o figurante, não engrossarão de uma simples aparição 300 transbordantes páginas de um romance.  

         - Um radioso 2022 a todos os leitores. Façam no próximo ano tudo aquilo que ficou travado nos vossos corações. Não aceitem nada que não esteja em harmonia com a vossa natureza. O inconformismo deve ser o sentimento mais distendido da vida.