quinta-feira, dezembro 23, 2021

Quinta, 23.

Pelos vistos, tudo se conjuga para que depois do Natal tenhamos o mesmo quadro de contágio por Covid-19 ou Ómicron que existiu há um ano. Desta vez, porém, as culpas não devem ser assacadas ao primeiro-ministro, mas a todos aqueles que discursam insistindo a infecção só acontece aos que acreditam nela. A culpa é da deturpação que católicos e anticatólicos fazem do gesto singelo dos Reis Magos, apropriado pela sociedade de consumo que o  ampliou e reduziu a uma festa pagã de uma frivolidade assustadora. 

         - Passei uma grande parte da manhã ao telefone, falando com este e aquele centro de saúde, de modo a conseguir levar a Piedade à presença de um médico. Ela ontem às 17 horas foi de urgência ao hospital de Setúbal onde esperou até à uma da madrugada para ser atendida. Devido decerto à ânsia em que tem vivido com as histórias das “namoradas” do neto, a tensão deve ter subido e daí o derrame de sangue pelo nariz. As análises não acusaram nada de especial e o clínico de serviço, deu-lhe dois comprimidos para debaixo da língua (ela estava com 17-8) e recambiou-a ao seu domicílio. Hoje tornou ao mesmo, eu entrei de serviço. Estive ao telefone com uma enfermeira aqui do Centro de Saúde de Palmela, a dada altura, ela vendo talvez o meu empenho, pergunta-me que relacionamento familiar existia entre nós; respondo-lhe nenhum, mas não devo abandonar ninguém aflito e muito menos alguém que me serve há mais de 35 anos. Do outro lado, há uma espécie de vazio que me levou a pensar que tinha perdido interlocutor, ela volta a si e desabafa: “Nos dias que correm não vejo gestos desses.” Então, multiplica-se em esforço, entra na página da Piedade, fornece-me informações, fala com uma colega do Pinhal Novo e assegura-me como devo proceder e aonde a levar. Falo de imediato com o neto, com quem não trocava uma palavra há pelo menos 20 anos, e explico-lhe que é seu dever e obrigação fazer pela avó aquilo que ela sempre fez por ele. Conversa cordata, julgo que útil. 

         Como os telefonemas foram alguns e os diálogos largos de tempo, a tia Júlia tentou falar comigo nesse entretanto a convidar-me para a Ceia de Natal . Quando, enfim, nos pusemos em contacto e eu lhe expliquei a razão da interrupção, ela disparou: “Pois, tem aí outra Maria.” E eu de pronto: “Ou outra tia Dália. - Pois, mas nessa altura eras um miúdo. Deixa lá quando chegar a tua vez, não vai faltar quem te ajude”, retorquiu. Deus a ouça. 

         - Virgílio, pelos vistos, tem o hábito de beber deste caldo e por isso perguntava-me outro dia ao telefone: “Como podes tu passar horas com o João sem falarem de política?” 

         - Francis, na sua eterna obsessão por tudo quanto é homo, ligou-me a informar que Flaubert teve pelo menos dois amantes. Disse-lhe que já pressagiava isso, porque nas cartas que ele troca com George Sand e eu estou a ler, esta também devia pressentir o mesmo embora nunca tivessem abordado abertamente (pelo menos até à página 220) o assunto com o autor de Madame Bovary (aliás o escritor costumava declarar: “Madame Bovary c ´est moi”), resposta imediata: “A George Sand era lésbica e teve um caso com uma cantora de ópera.” Isto era do meu conhecimento porque a autora de Lélia conta em Un Hiver a Majorque e o estudo de André Maurois no-lo assinala.