sábado, outubro 05, 2019

Sábado, 5.
Porque falei de André Gide, subi à biblioteca de cima, para consultar a sua obra. Encontrei um livro que não havia lido, Paludes, e abri a primeira edição de Faux-Monnayeurs, numerada (462), em papel Van Gerder, com esta dedicatória escrita discretamente a lápis: “Da Isabel para o Helder, Dezembro 1998”, que julgo já aqui referi. Logo viajei ao encontro da minha querida amiga, felizmente ainda viva, que a idade avançada circunscreve ao apartamento familiar, em Cascais. Tantas histórias, almoços, jantares, idas aqui e ali, viagens, longas discussões, num tempo tão diferente deste, onde a solidariedade e amizade pareciam estar ao dobrar de cada esquina, no sopro do vento temperado que nos reunia num instante, ela e ao Saramago, num qualquer ponto da cidade. Foi, contudo, a sua voz clara que sempre conservou que retive, que quis agarrar, como se estivéssemos aqui, estendidos ao sol, a falar de livros e autores, como acontecia quando a trazia comigo nos fins-de-semana.

         - Vivo rodeado de um oceano de vinha com múltiplas nuances de ocre que me anuncia o Outono e onde me banho a toda a hora de contentamento e beleza.


         - Quantas vezes ao descer de manhã, depois de um sono repousado, dou de caras com o salão que parece emergir de um diálogo e sentir-se perturbado com a minha inopinada presença. Olho este mundo que me é mais que todos familiar, e tento descobrir o que se passa aqui quando estou lá em cima sete horas deitado, mergulhado num mundo provavelmente paralelo a este que aqui se expande em discussão e talvez bisbilhotices. Neste entrelaçar de dúvidas e ecos de presenças desconhecidas, dou comigo a querer reter as personagens apanhadas de surpresa. Não são visíveis na imagem, mas estão lá nas fendas das sombras, jogando o jogo claro-escuro que a manhã veio suspender abertas as portadas e afastados os reposteiros. O silêncio que parece também pasmado, trejeita, ondula pelos cantos, beija as estantes dos livros, sobe ao tecto como abóbada da lua e fornece a quem por aqui se detém à conversa noite fora, os signos e os sinais do intruso. É claro que cada um dos presentes, mal me ouviu escada abaixo fechou-se, encolheu-se, reduziu-se de forma a entrar nas páginas dos milhares de livros que de mudos não contam a ninguém os segredos que só revelam a quem tem sede de saber e curiosidade de perscrutar. Olho, então, demoradamente a foto em que pretendi surpreendê-los, retendo a azáfama que de súbito pressenti mal cheguei à porta, cada um rabiando na busca do seu posto diurno sem perder de vista o conjunto dos convivas nocturnos. De seguida, caindo em mim, passando uma vez mais os olhos pelos quatro cantos da divisão, dou comigo a imaginar que formidável romance sairia deste universo que junta todas as noites para tertúlias intermináveis, muito falatório ruidoso, daí o barulho que ouço em cima de gavetas a abrir, armários a fechar, como se esta gente que em baixo pernoita fosse as personagens que o romancista utilizaria se para tanto tivesse engenho e arte.