Sábado, 5.
Porque
falei de André Gide, subi à biblioteca de cima, para consultar a sua obra.
Encontrei um livro que não havia lido, Paludes,
e abri a primeira edição de Faux-Monnayeurs,
numerada (462), em papel Van Gerder, com esta dedicatória escrita discretamente
a lápis: “Da Isabel para o Helder, Dezembro 1998”, que julgo já aqui referi.
Logo viajei ao encontro da minha querida amiga, felizmente ainda viva, que a idade
avançada circunscreve ao apartamento familiar, em Cascais. Tantas histórias,
almoços, jantares, idas aqui e ali, viagens, longas discussões, num tempo tão
diferente deste, onde a solidariedade e amizade pareciam estar ao dobrar de
cada esquina, no sopro do vento temperado que nos reunia num instante, ela e ao
Saramago, num qualquer ponto da cidade. Foi, contudo, a sua voz clara que sempre
conservou que retive, que quis agarrar, como se estivéssemos aqui, estendidos
ao sol, a falar de livros e autores, como acontecia quando a trazia comigo nos
fins-de-semana.
- Vivo rodeado de um oceano de vinha
com múltiplas nuances de ocre que me anuncia o Outono e onde me banho a toda a
hora de contentamento e beleza.
- Quantas vezes ao descer de manhã,
depois de um sono repousado, dou de caras com o salão que parece emergir de um
diálogo e sentir-se perturbado com a minha inopinada presença. Olho este mundo
que me é mais que todos familiar, e tento descobrir o que se passa aqui quando
estou lá em cima sete horas deitado, mergulhado num mundo provavelmente paralelo
a este que aqui se expande em discussão e talvez bisbilhotices. Neste
entrelaçar de dúvidas e ecos de presenças desconhecidas, dou comigo a querer reter
as personagens apanhadas de surpresa. Não são visíveis na imagem, mas estão lá
nas fendas das sombras, jogando o jogo claro-escuro que a manhã veio suspender
abertas as portadas e afastados os reposteiros. O silêncio que parece também pasmado,
trejeita, ondula pelos cantos, beija as estantes dos livros, sobe ao tecto como
abóbada da lua e fornece a quem por aqui se detém à conversa noite fora, os
signos e os sinais do intruso. É claro que cada um dos presentes, mal me
ouviu escada abaixo fechou-se, encolheu-se, reduziu-se de forma a entrar nas
páginas dos milhares de livros que de mudos não contam a ninguém os segredos
que só revelam a quem tem sede de saber e curiosidade de perscrutar. Olho,
então, demoradamente a foto em que pretendi surpreendê-los, retendo a azáfama
que de súbito pressenti mal cheguei à porta, cada um rabiando na busca do seu
posto diurno sem perder de vista o conjunto dos convivas nocturnos. De seguida,
caindo em mim, passando uma vez mais os olhos pelos quatro cantos da divisão,
dou comigo a imaginar que formidável romance sairia deste universo que junta
todas as noites para tertúlias intermináveis, muito falatório ruidoso, daí o
barulho que ouço em cima de gavetas a abrir, armários a fechar, como se esta
gente que em baixo pernoita fosse as personagens que o romancista utilizaria se
para tanto tivesse engenho e arte.