Sexta,
2.
Na
quarta-feira quando o Carlos Soares aí esteve, mostrou-me um dossier cheio de
desenhos coloridos. Eram, se não estou em erro, 24 folhas A4, em papel azul,
com o logótipo da Câmara da Amadora. Que beleza! Que garra! Que arte fora de
todas as normas, embora integrada num aceno de modernidade a que eu chamaria clássico,
possível porque ele possui o segredo que lhe foi transmitido pelos antigos,
confiantes de que prosseguiria por milhões de anos os traços de mundos a
provir. Ele fala em dois milhões de anos e antecipa esse mundo onde ele se
encontrará na expressão dos seus traços, fulgor criativo, delírio
desassossegado, num cosmos hipotético, denso de magia, poesia, mistério. Nos
seus desenhos, como na sua escultura, vê-se o que se quiser: montanhas, mares,
peixes desconformes, adamastores, cavalos marinhos, vales profundos, rostos,
corpos de uma sensualidade provocadora, serpentes esponjosas que parecem
caminhar como caracóis medonhos, deixando-nos a liberdade de vermos o que nos
toca no nervo da liberdade que não rotula, não intervêm com princípios moralizantes,
não dá nomes à planura da folha cheia de signos, sinais, interrogações,
servindo apenas a arte, a grande arte, aquela que se manifesta envolta na
inquietação, no espanto, na surpresa e até no riso quedo, no murmúrio íntimo, hipnótica, que não vem à flor dos sentidos senão quando nos dispomos a olhá-la seguindo
cada traço, cada elemento pictórico, cada sombra no desfiladeiro da folha que tomba
para o outro lado onde o precipício nos espera...