Quarta,
28.
O
Paulo Santos, generoso, levou-me e foi meu cicerone durante duas boas horas, a
conhecer a Academia de Armada, junto ao Terreiro do Paço. O edifício, soberbo,
de elegância e arquitctura imponente guardando, todavia, uma certa simplicidade
que a pedra realça e compõe em ornatos que emolduram as empenas, é uma
reconstrução executada após o terramoto de 1755. A traça original, julgo que é
do séc. XVI. Foi, aliás, diz-me o Paulo, das primeiras edificações levadas a
cabo por D. José devido à importância que o mar tinha (e ainda têm) para
Portugal. Dentro dos seus muros espaçosos, e não obstante o ruído do Cais do
Sodré, do rio e da multidão que arrasta os pés por aquelas paragens, dos carros
que não param um segundo de passar, tudo ao ritmo do progresso que estupidifica
as pessoas, dentro das suas divisões amplas não chega o mínimo barulho. Avançamos
por corredores cheios de história, rasgados de janelas onde o Tejo entra em
catadupa, bruxuleando no lençol de água, a silhueta recortada ao fundo, na outra
margem que o outro disse ser o “deserto”, de um resto de vegetação entre o casario
baixo. Ao centro uma larga praça de parada, com uma série de esculturas
minimalistas que pretendem contar a história que há anos se faz nos gabinetes
ao lado, onde está o Chefe do Estado-Maior da Armada, a escola de cadetes,
altas patentes enfeitadas de galões dourados, oficiais, praças e a comitiva de
criadagem contratada fora de portas. Aí, a Câmara de Lisboa, mandou construir uma
piscina horrível sem gosto, de águas paradas, que no Verão deve ser
nauseabunda, tão pouco (imagino) ao gosto da Marinha. Nesta ala onde estamos
iluminados pelo silêncio, pela atmosfera de trabalho intelectual, pelos livros
que enchem as prateleiras na Biblioteca, pelo gabinete do Comandante, um homem
imponente, à paisana, que me estende a mão num cumprimento circunspecto, e
durante a curta conversa não parou de olhar para o meu pulôver de pura
Cachemira, e mais além o gabinete de outro oficial com apuro à moda inglesa, tudo
preenchido de livros, quadros, peças ligadas à Armada, cavados sofás que nos
tentam a ficar por horas hipnotizados pela atmosfera leve, redonda, macia,
convidativa à leitura, ao estudo, ao dolce
far niente.
Deixei de propósito para o fim a
revelação da capela de S. Roque que por si só merece a visita daqueles que não
gostam de futebol e encontram na arte o húmus da sua existência. Construída em
1760 pela irmandade dos Carpinteiros Navais, a recuperação com ajuda da Santa Casa
da Misericórdia, é uma maravilha. Muito pequena de área, é por assim dizer um
biju de uma beleza rara. Construída em trompe
l´oeil, quero dizer as paredes interiores de alto abaixo, deixando a cúpula
trabalhada em estuque de uma brancura imaculada e o altar com uma magnífica pintura do retábulo
do santo padroeiro com o célebre cão que o alimentou (de Pedro Mascarenhas de
Carvalho? Vou ter que perguntar ao professor Carlos Soares, embora me incline
para ele devido ao muito trabalho feito na igreja dos Mártires e noutras do
Chiado) e os lambris das paredes forrados com azulejos contando a vida do Santo,
são exemplares lindíssimos setecentistas. A graça da dissimulação que se opera
com a pintura que cobre todo o interior, é por si dizer uma nota que
impressiona e deixa “crescer” o altar-mor em plenitude.
- No tempo que me resta da minha vida
extramuros, vou avançando com os trabalhos aqui na quinta. Cortei o relvado na
frente do salão e com a roçadora aparei junto à tijoleira e em torno da
piscina. Felizmente até agora sem dor lombar alguma. Apressei-me porque nos
prometem o retorno da chuva. Todavia, este mês e o próximo, vão ser de muita
azáfama no campo e, como sempre, para não desanimar, digo para mim mesmo:
“trabalho nunca te falta, rapaz. E ainda bem”.
- Parece que foi encontrado nas célebres
grutas de Qumrán (Cisjordânia) mais um núcleo de fragmentos do Génesis
Apócrifo. Os estudiosos pensam que este primeiro rolo data do séc. I a.C. e é
constituído pelos capítulos quinto ao quinze do Antigo Testamento. O manuscrito
conta o que aconteceu a Noé depois do dilúvio. É apaixonante tudo isto. Aliás,
foi na década de cinquenta do século passado, que foram encontrados os
primeiros textos designados por Manuscritos do Mar Morto. O Novo Testamento
penso que está melhor estabelecido e dizem os estudiosos que já desde o
imperador Trajano (98 d. C.) estavam escritos os quatro Evangelhos.