Domingo,
25.
O
telefonema amigo, sexta-feira, do João a saber como decorria o almoço com o
Carlos Soares. Tínhamos estado ao telefone na véspera à noite e eu havia-lhe
transmitido a vinda do nosso amigo. Bom
e nobre Corregedor!
- Todo o dia flaches intempestivos no
meu cérebro. O quarto capítulo ainda não se me apresenta claro. Ou antes é
preciso que os factos me sejam mostrados para os levar à teia do texto.
- O que não aconteceu esta manhã,
apesar de ter saído cedo para o Café da Casa. Mal abanquei, apareceu o J. que
se sentou na minha mesa. Longa conversa sobre editores (ele trabalhou no meio) que
se prolongou até ao meio-dia. Perdida a manhã, levantei amarras e fui Avenida
Luísa Todi num passeio saudoso de outros tempos quando, valdevinos, por ali
ficava até tarde na noite. Setúbal sempre foi para mim uma cidade de segredos,
de obscuras vidas, de pasodobles, de esquinas sombrias, com a sua frente
ribeirinha cheia dos encantos que escapam ao dia.
- Gabriel Matzneff. Não obstante a sua
obsessão pela saúde, a alimentação, a dietética foi há dois anos sujeito a
operação ao coração. Um exame de rotina detectou que a carótida esquerda estava
entupida a 70 por cento. Catástrofe. Ele que depois de alguns anos tem a vida
suspensa do cancro da próstata e de todas as pequenas misérias que a idade
traz. Para o hospital levou o Journal
de Stendhal (eu levei, em 2010, Petit
traité des grandes vertus de Comte-Sponville). Revejo-me muito nele, na sua
independência, liberdade e inconformismo, como nos autores que prefere e na
coragem que demonstra ante os pontapés da vida. O verdadeiro escritor,
ensina-nos sempre qualquer coisa. Com Matzneff aprendo a defender-me e a encarar
as adversidades sem desistir dos meus princípios e encarando a solidão como um
meio de ultrapassar as fragilidades. São elas que nos fortalecem. Tanto ele
como eu, não temos vida para estar doentes, não fomos preparados para isso e
dada a liberdade que escolhemos nos acompanhasse ao longo da nossa existência,
o esforço pessoal é maior e decerto mais nobre e desafiador que todos os que
levam a vida pendurados em alguém. Acresce que uma pessoa com fé nunca está só.
Carpe diem, quam minimum credula postero.
Esta frase de Horácio convém-me às mil maravilhas.
Gabriel Matzneff, em Paris |