Domingo,
4.
Outro
dia tive um sonho estranho. Durante um longo momento, deslizou perante os meus
olhos estupefactos, uma espécie de rolo de máquina de calcular com a inscrição
dos séculos desde a origem da humanidade ao tempo presente. Vi os séculos
antigos a.C., aqueles que os Profetas contam, a Grécia, Roma e por aí fora. A fita corria
muito depressa não me dando tempo a ler as inscrições impressas e isso
enervou-me a um ponto que acordei agitado. Depois, pelos dias seguintes, não
deixei de pensar no que a noite me havia trazido do fim dos tempos. Em verdade,
desde sempre, vivo com a curiosidade angustiante de conhecer a génese do mundo,
aquilo a que os cientistas chamam o Big
Bang. É para mim um mistério que nunca me abandonou. E se acredito que na
origem da vida, de toda a vida, está o meu Criador, esse relâmpago, ou esse
tempo de gestação que introduziu o tempo no universo, imagino-o catastrófico,
tenebroso, terrível. Até que Deus, esgotado, o serenou e o santificou.
- Tenho tanta vontade de criar arte,
de fazer algo absolutamente fora deste mundo, quando me entrego de alma e
coração ao romance. Não é propriamente a realização do objecto chamado livro,
mas algo que o ultrapasse e seja no fim das palavras um murmúrio infinito de
beleza. Daí que às vezes fique uma manhã inteira à procura da palavra que
encaixe, do sinónimo que defina, do sujeito que complete a oração para que nenhuma
peça fique deslocada do todo. Foi deste modo que hoje fechei o computador.
“Durante
o percurso, operou-se no seu coração uma viragem surpreendente. O senhor
Patrício, sentindo-se protegido, livre para pensar e observar, apesar de
lamentar a ausência da mulher a seu lado, embalado pela conversa amena e amiga,
os raios de sol que entretanto sucederam à noite trevosa, olhava Flávio como o
seu único filho que o destino o presenteou. Esse sentimento era de tal modo
penetrante, que o levara a esquecer Rui. Apetecia-lhe abraçar Flávio, o jovem
doce e bonito que noutros tempos lhe entrava em casa com um sorriso suave
desenhado no rosto luminoso a que se juntava à florescência da idade, a
educação esmerada, uma ponta de mistério que o fazia estar presente e ausente,
como uma chama que bruxuleia ao vento mas não se extingue. Por cerimónia, não
manifestara o que lhe atravessava o coração, nem transpusera para o gesto ou a
palavra o amor paternal que sentia pelo amigo do filho, naquele momento
consagrado de algo que lhe escapava e fizera-se presente para redimir de algum
modo os desgostos e decepções com que o seu verdadeiro descendente o
estigmatizara.
Foi, pois, outro homem aquele que
entrou no restaurante. O engenheiro Patrício franqueara a porta, hirto, um
sorriso aberto no rosto rejuvenescido, como se a vida começasse ali, naquele
instante reflorescido, sem passado nem abalos sísmicos, toda a força dos seus
vinte anos vinda não se sabe de onde, provavelmente das catacumbas onde a idade
e a morte sua companheira têm tendência a desenvolver-se, a criar ódios e
raízes podres, misérias senis e entraves à luz das manhãs claras que trazem o
dia descido dos espaços siderais inacessíveis.”