domingo, março 04, 2018

Domingo, 4.
Outro dia tive um sonho estranho. Durante um longo momento, deslizou perante os meus olhos estupefactos, uma espécie de rolo de máquina de calcular com a inscrição dos séculos desde a origem da humanidade ao tempo presente. Vi os séculos antigos a.C., aqueles que os Profetas contam,  a Grécia, Roma e por aí fora. A fita corria muito depressa não me dando tempo a ler as inscrições impressas e isso enervou-me a um ponto que acordei agitado. Depois, pelos dias seguintes, não deixei de pensar no que a noite me havia trazido do fim dos tempos. Em verdade, desde sempre, vivo com a curiosidade angustiante de conhecer a génese do mundo, aquilo a que os cientistas chamam o Big Bang. É para mim um mistério que nunca me abandonou. E se acredito que na origem da vida, de toda a vida, está o meu Criador, esse relâmpago, ou esse tempo de gestação que introduziu o tempo no universo, imagino-o catastrófico, tenebroso, terrível. Até que Deus, esgotado, o serenou e o santificou.   

         - Tenho tanta vontade de criar arte, de fazer algo absolutamente fora deste mundo, quando me entrego de alma e coração ao romance. Não é propriamente a realização do objecto chamado livro, mas algo que o ultrapasse e seja no fim das palavras um murmúrio infinito de beleza. Daí que às vezes fique uma manhã inteira à procura da palavra que encaixe, do sinónimo que defina, do sujeito que complete a oração para que nenhuma peça fique deslocada do todo. Foi deste modo que hoje fechei o computador.

“Durante o percurso, operou-se no seu coração uma viragem surpreendente. O senhor Patrício, sentindo-se protegido, livre para pensar e observar, apesar de lamentar a ausência da mulher a seu lado, embalado pela conversa amena e amiga, os raios de sol que entretanto sucederam à noite trevosa, olhava Flávio como o seu único filho que o destino o presenteou. Esse sentimento era de tal modo penetrante, que o levara a esquecer Rui. Apetecia-lhe abraçar Flávio, o jovem doce e bonito que noutros tempos lhe entrava em casa com um sorriso suave desenhado no rosto luminoso a que se juntava à florescência da idade, a educação esmerada, uma ponta de mistério que o fazia estar presente e ausente, como uma chama que bruxuleia ao vento mas não se extingue. Por cerimónia, não manifestara o que lhe atravessava o coração, nem transpusera para o gesto ou a palavra o amor paternal que sentia pelo amigo do filho, naquele momento consagrado de algo que lhe escapava e fizera-se presente para redimir de algum modo os desgostos e decepções com que o seu verdadeiro descendente o estigmatizara.


         Foi, pois, outro homem aquele que entrou no restaurante. O engenheiro Patrício franqueara a porta, hirto, um sorriso aberto no rosto rejuvenescido, como se a vida começasse ali, naquele instante reflorescido, sem passado nem abalos sísmicos, toda a força dos seus vinte anos vinda não se sabe de onde, provavelmente das catacumbas onde a idade e a morte sua companheira têm tendência a desenvolver-se, a criar ódios e raízes podres, misérias senis e entraves à luz das manhãs claras que trazem o dia descido dos espaços siderais inacessíveis.”