sábado, outubro 31, 2020

Sábado, 31.

Ontem estive na Brasileira e depois de tratar de vários assuntos, encontrei-me num restaurante da Av. de Roma com o João Corregedor que ali mora. Almoço bem condimentado de política que durou para cima de duas horas. João quando está a sós comigo, transforma-se: aceita as minhas ideias, toma tempo para as analisar, contrapõe, acrescenta pareceres, sempre cordial, travado de crítica, sereno e atento. Claro está que não estive de acordo com muitas das suas análises e quando lhe perguntei o que marcava o consulado de António Costa, respondeu os aumentos salariais. Esta parece ser a flecha para elevar aos céus da esquerda um homem que possui a arte de governar deixando tudo na mesma. Sendo esperto na manobra política que é hoje a arte de quem governa muito apreciada pelos seus confrades, estes nem se dão conta que os socialistas apenas se limitaram a repor aquilo que a troica obrigou a tirar-nos; e se algum aumento houve, também por outro lado os impostos cresceram assustadoramente, alguns dos quais ainda hoje fazem mossa, como, por exemplo, os aplicados aos combustíveis que, relembro, nos foi dito serem por um período curto e acabaram por ficar. João fala, multiplica, encadeia temas, perdendo-se no emaranhado de leis, vozes, citações e para travar tudo aquilo tenho de me impor, de contrário a conversa é interminável ou antes, só ele fala e o outro limita-se a ouvi-lo ou adormece para descansar e tomar fôlego, como se tudo aquilo fosse sedimentação de um pensamento igual, padronizado, the same ou verdades contraintuitivas. A miúde, lá vinha “tu que és inteligente e culto” por que raio não pensas como eu! Depois, inopinadamente: “quero saber o que pensas disto. Ando a reflectir muito sobre o que se passa no mundo, na democracia e assim.” Digo-lhe penso o pior, mas, como estamos sempre em desacordo, não vale a pena continuar. “Não digas isso. Eu quando chegar a casa vou anotar muito do que expuseste.” Sei quais são os seus pontos fracos e porque me desagradam e todavia não despego da simpatia que nutro por ele. No final, disse-lhe: “Acho que o PC é indispensável à democracia, mas se ele um dia chegar ao poder expatrio-me, porque não tenho ilusões quanto aos seus métodos.” “Não digas isso!” murmurou num tom delicado.  

         - No metro senta-se no banco da frente um rapaz de uma beleza esplendorosa, alvo, limpo, meditativo. De pronto, saca da Bíblia e pôs-se a ler como se fosse um seminarista que não dispensa em dia de folga o breviário que o conduzirá ao paraíso e o desviará das tentações únicas para a Igreja – pensamentos, palavras e actos sexuais.  

         - A propósito, muita desta filosofia que nos condena a não aceitar o corpo com todos os seus apelos, vem de S. Paulo. Nomeadamente da Carta aos Romanos (1-26) e Coríntios (6-9). Estive a fazer aquilo a que se chama literatura comparada, e verifiquei que as notas de Frederico Lourenço não diferem do entendido mundial em estudos bíblicos, Nicholas Wright. Eu ainda não percebi se as notas de rodapé na tradução portuguesa são da autoria do nosso helenista conimbricense se, pelo contrário, elas estão adstritas à versão grega.   

         - Marcelo diz que pensa falar brevemente ao país. Como assim? Então não é isso que ele faz minuto a minuto, noite e dia numa orgia de palavras que não cabem no rosário dos nossos infelizes dias?! 

         - Parece que vêm aí mais confinamentos. Dizem eles que para termos folga para o Natal. O mundo está num fosso de contradições, onde impera apenas o consumo e a arte do faz-de-conta. O Natal é uma quadra religiosa, que anuncia o nascimento de Jesus Cristo. Todavia, anda meio mundo às avessas com Deus e a sua Igreja, aproveitando a estação para festas consumistas, amizades velhacas, famílias hipócritas, numa roda-viva daqui para acolá, mostrando o lado faminto de ter e haver, sob a falsa ideia do amor “em família”.