sábado, outubro 17, 2020

Sábado, 17. 

Uma senhora que encontrei, disse-me que tem uma filha médica e esta lhe contou que tem colegas – médicos e enfermeiros – que pura e simplesmente abandonam os doentes com Covid à sua sorte. Não quero acreditar que a classe médica tenha chegado a este grau de desumanidade ou criminalidade. Mas, quando a vida humana é menos importante que os negócios, é provável que o contágio homicida se tenha estendido por todo o lado. Duma coisa estou certo: nem Costa nem Marcelo morrerão desse tipo de crime. E daí, não sei. 

          - Ontem encontrei-me com o João Corregedor na Brasileira. Levantada a tenda dos comiciais, tendo-se entretanto juntado a nós o Carlos, descemos o Chiado e fomos abancar no Caneca de Prata, na rua do mesmo nome, o restaurante preferido do nosso deputado ou, como eu prefiro, do meu colega jornalista. Longa e interessante conversa sobre um catálogo de assuntos que seria enfadonho enumerá-los, onde a política não podia faltar, bem entendido. O que eu venho notando e era disso que queria falar, é que o João está a deixar a capa da farfalheira comunista para se tornar um espírito mais aberto e menos sectário. O Carmo e os outros diz que isso deve-se a mim que não lhas poupo, mas eu acho que foi na confrontação por vezes acesa dos nossos pontos de vista, que ele se foi abrindo para si próprio. A discussão de ontem foi civilizada, com as buchas partidárias, nomeadamente, o elogio ao ditador da Coreia do Norte e os panegíricos a António Costa que tem nele um simpatizante seguro. Os dois, João e Carlos, estiveram frente a frente sem os habituais e tremendos contrastes político-sociais. Bom. Depois espreitámos o mundo daqui a dois milhões de anos que o escultor vai desenhado com traço seguro e delirante. Os desenhos saem em catadupa da pequena pasta que sempre o acompanha e onde guarda aquele tesouro que antecipa os séculos a advir. Eu conheço a sua colecção de desenhos eróticos fabulosos e incito-o a fazer uma exposição com eles, mas o Carlos contrapõe a família, os filhos e o neto nascido na China. Digo-lhe: “Se pensas na família nunca sairás do caixão de sândalo onde ela gosta de te sepultar. A família é por natureza reaccionária, limitativa, castradora.” Com isto, ele tira da pasta uns quantos trabalhos eróticos e o João que não sabia da sua existência, logo esbugalha os olhos para umas quantas toalhas de mesa onde ele perde horas a esboçar um trabalho de grande rigor e criatividade. Ofereceu um ao nosso amigo e eu escolhi um da fase erótica que juntarei a mais uns quantos que possuo. Terminado o almoço, fomos visitar a igreja de S. Nicolau recentemente reaberta ao público depois de obras de restauração. Estarreci ante uma Mater Dolorosa (da autoria de António Manuel da Fonseca?) é uma imagem que traduz humanidade e dor, mas simultaneamente uma presença que acolhe o coração de quantos a admiram. 

         -  Carlos seguiu caminho, nós demos uma volta pela desolada Baixa lisboeta. É quase um cemitério de revolta, um lugar abandonado, um sopro humano agonizante. Muitas lojas fechadas, uma espécie de desolação e sublevação estampadas nos prédios, a Rua da Prata um corredor onde o vento encana sacudindo os poucos veraneantes, levando memórias e lutas, sonhos e desesperanças. Tudo isto se deve à política desastrosa do Mágico. Apostou as cartas todas no turismo e agora sonha com o passado como se as feridas abertas se fechem por obra e graça do seu optismismo. Que tontaria! Que irresponsabilidade! Que forma de governar que só tem em conta o imediato! Portugal país de turismo, de serviços! Que merdelhice de perspectiva, com fundações de barro, dinheiro na mão e futuro desafortunado! Os velhos foram corridos dali a pontapé, os novos moradores partiram e puseram à venda as casas compradas para especulação, não há quem as queira, o mundo encolheu e só o vírus chinês é hoje rei de senhor dele.  

A revolta do antigo inquilino selada na montra. 

         - O Corregedor, quando saímos juntos, tem a mania ante os que nos servem – donos de restaurantes, empregados, lojistas e assim – de me tratar por “doutor”. Eu perdoo-lhe e até compreendo - aquilo são resquícios do Parlamento onde todos são doutores da mula ruça embora a maioria seja analfabeta.