terça-feira, abril 14, 2020

Terça, 14.
Quando a chuva pelas quatro da tarde tombava forte e trovões troavam no ar, eu que estava no duche e da janela via o espectáculo grandioso da natureza, surpreendi-me com o trabalhador do meu vizinho que afoitamente continuava a gradar a terra entre filas de videiras. Que poesia, que espaço suspenso do passado, que arrojo o do homem fazendo frente à fúria dos elementos combinados naquele instante! Quando desci, aproveitando o facto de o ver passar rente à vedação que nos separa, tentei falar-lhe. Mas ele parou o tractor, desceu e veio ao meu encontro. Perguntei-lhe se não achava que o seu trabalho era poesia pura na tarde em revolta. Riu-se, retornou à cabine à pressa e sorriu. Deve ter dito para os seus botões: “E fui eu molhar-me para ouvir um pobre monge que vê coisas estranhas.”

         - Ontem, ao puxar um pesado tronco de ameixieira farfalhudo, disparou do meu rosto os óculos que eu tinha comprado em Roma a um velho oculista, a dois passos da Piazza del Popolo, maravilhosamente feitos à mão. Consequência andei esta manhã de novo a procurá-los no mato denso e nada. Estou, portanto, sem lunetas. Vejo bem ou melhor ainda sem eles, porque há algum tempo que tenho em mente consultar o oftalmologista para lhe expor este fenómeno. Mesmo para ler ou trabalhar no computador como agora, não preciso deles. Parece que este prodígio acontece devido ao nervo xpto que nos rejuvenesce. O problema vai ser arranjar consulta no estado actual de médicos e hospitais. E dar 70 euros a um compincha do privado, não estou para isso.

         - Enquanto estava a tomar banho, pensei fazer como Turguénev uma radiografia das personagens de O Matricida. Uma espécie de biografia onde ia desenhando e abrindo para mim o carácter, o tipo físico, as características da personalidade de cada uma, etc. Deste modo, teria a sensação de escrever o romance e habilitar-me-ia, como direi, a entrar sorrateiramente nele. Por outro lado, tenho lido alguma coisa sobre os tumultos ente ucranianos e russos. Semyon nasceu em Shoctka uma pequena aldeia na periferia de Sebastopol. Terá uns dez anos e dos acontecimentos nada sabe. O pai hesita em alistar-se no exército russo, combatendo o governo instalado em Kiev. Ele é pró-russo. Não por ideologia, mas porque nasceu russo e não gostava que o filho se fizesse ucraniano. Mas cá estou eu a debitar elementos narrativos sem, todavia, conseguir ligá-los numa história com consequência.


         - Ménage. Trabalho exterior com roçadora. Tempo instável – chuva e sol à vez. Falei com a Tereza que me convidou para um almoço quando nos abrirem as grades. Deve ser para me agradecer o texto que escrevi (em francês) para a exposição de Paris no próximo ano. Se houver ano e a galeria que a convidou abrir portas.