Terça,
14.
Quando
a chuva pelas quatro da tarde tombava forte e trovões troavam no ar, eu que
estava no duche e da janela via o espectáculo grandioso da natureza,
surpreendi-me com o trabalhador do meu vizinho que afoitamente continuava a
gradar a terra entre filas de videiras. Que poesia, que espaço suspenso do
passado, que arrojo o do homem fazendo frente à fúria dos elementos combinados
naquele instante! Quando desci, aproveitando o facto de o ver passar rente à
vedação que nos separa, tentei falar-lhe. Mas ele parou o tractor, desceu e
veio ao meu encontro. Perguntei-lhe se não achava que o seu trabalho era poesia
pura na tarde em revolta. Riu-se, retornou à cabine à pressa e sorriu. Deve ter
dito para os seus botões: “E fui eu molhar-me para ouvir um pobre monge que vê
coisas estranhas.”
- Ontem, ao puxar um pesado tronco de
ameixieira farfalhudo, disparou do meu rosto os óculos que eu tinha comprado em
Roma a um velho oculista, a dois passos da Piazza del Popolo, maravilhosamente
feitos à mão. Consequência andei esta manhã de novo a procurá-los no mato denso
e nada. Estou, portanto, sem lunetas. Vejo bem ou melhor ainda sem eles, porque
há algum tempo que tenho em mente consultar o oftalmologista para lhe expor
este fenómeno. Mesmo para ler ou trabalhar no computador como agora, não
preciso deles. Parece que este prodígio acontece devido ao nervo xpto que nos
rejuvenesce. O problema vai ser arranjar consulta no estado actual de médicos e
hospitais. E dar 70 euros a um compincha do privado, não estou para isso.
- Enquanto estava a tomar banho,
pensei fazer como Turguénev uma radiografia das personagens de O Matricida. Uma espécie de biografia
onde ia desenhando e abrindo para mim o carácter, o tipo físico, as
características da personalidade de cada uma, etc. Deste modo, teria a sensação
de escrever o romance e habilitar-me-ia, como direi, a entrar sorrateiramente
nele. Por outro lado, tenho lido alguma coisa sobre os tumultos ente ucranianos
e russos. Semyon nasceu em Shoctka uma pequena aldeia na periferia de
Sebastopol. Terá uns dez anos e dos acontecimentos nada sabe. O pai hesita em
alistar-se no exército russo, combatendo o governo instalado em Kiev. Ele é pró-russo.
Não por ideologia, mas porque nasceu russo e não gostava que o filho se fizesse
ucraniano. Mas cá estou eu a debitar elementos narrativos sem, todavia,
conseguir ligá-los numa história com consequência.
- Ménage. Trabalho exterior com
roçadora. Tempo instável – chuva e sol à vez. Falei com a Tereza que me
convidou para um almoço quando nos abrirem as grades. Deve ser para me
agradecer o texto que escrevi (em francês) para a exposição de Paris no próximo
ano. Se houver ano e a galeria que a convidou abrir portas.