sábado, abril 04, 2020

Sábado, 4.
Antes de a chuva que nos prometem chegar, pelas nove da manhã, pus mão à obra e iniciei o corte da erva ruim do jardim. Durou como é norma enquanto houve gasolina no depósito da roçadora, isto é, uma hora a passar. Desse trabalho saí ileso, sem cansaço, satisfeito pelo que vi realizado. Já aqui disse muitas vezes: sou corredor de fundo. Acredito mais no trabalho constante e metódico, que naquela aparente azáfama dos políticos e empresários sempre em reuniões e atarefados de um lado para o outro, mas cujo resultado ao fim do dia se cifra em zero. Conheci-os na minha vida jornalística e empresarial, sei do que falo e falo com consistência vivida e observada ou seja com conhecimento de causa.

          -Estive ontem à noite ao telefone com a pintora Carmo Pólvora 1 hora e 22 minutos! Ela é noctívaga e, portanto, dorme de dia. O contrário de mim que após a conversa disparei cheio de sono para a cama onde cheguei atrasado e logo mergulhei no sono dos justos. Ela é nascida em Leiria. Daí resultou em cascata as memórias que se recusam a morrer. Acontece que eu conheço ao pormenor a cidade. Primeiro, através do meu saudoso padre João Soares; depois pelo vale do amor que me coube percorrer quando uma paixão absolutamente descontrolada me levava todos os fins-de-semana lá. Deste período tremendo, não falei à minha amiga porque me dá ideia que ela é um pouco cusca. E depois porque foi ontem, um triste período de quinze anos me separam dessa aventura extraordinária a que acresce o ser tímido e reservado que eu sou.

         - Talvez os romances estejam cheios destas vidas secretas que só se revelam por intermédio das personagens fictícias. Leitor: não acredite na invenção dos livros dos nossos dias - “é lixo”, é produto rebotalho, não perca tempo com isso. É coisa para embalar, em que nem o próprio autor acredita. Vou citar ainda Virginia Woof referindo-se a certos escritores do seu tempo: são “comerciantes das letras”. (pág. 104, Diário) Porque onde melhor nós encontramos os autores que nos abriram horizontes, é nos seus romances. Os diários, na maioria dos casos, são construções da personagem que o escritor gostaria de deixar para a posteridade. Casos não faltam, ocorre-me de repente André Gide e o burguês Thomas Mann. Evidentemente, autores das histórias de embalar só existem, porque o tecido cultural de um povo é pobre, porque os editores não têm em conta a cultura e correm atrás do sucesso, do dinheiro fácil, a cultura e arte transformadas ou equiparadas a qualquer outro produto descartável. Não é por acaso que o meu amigo livreiro Simão, se escandaliza com os meus livros sublinhados e anotados - “perdem valor”, diz-me ele. Para mim, contudo, é o oposto: eles acrescentam valor à obra, abrem janelas para novos leitores, confrontando-os com o parecer que o primeiro olhar teve com a história, o tema, a tese defendida. Claro que, como no caso do meu amigo, o livro é papel vendido a granel e como tal nenhum interesse para além disso. Agora quando uma obra é feita a partir do interior, na dor e espanto do acto vivido, do sofrimento pessoal e colectivo, ela transborda por assim dizer de si mesma, para se projectar em camadas sucessivas de inquietação e interrogação, abanando os alicerces estabelecidos e acordando para a realidade que os sistemas totalitários e a alienação da vida, em obra d´arte vivificadora e visionária.

         - Porque será que nos países europeus culturalmente evoluídos a existência de um partido comunista ortodoxo não tem lugar? Eu dou-lhes a resposta: porque o passado e a experiência histórica do regime foi uma desilusão que fez estruturas e processos políticos favorecer elites, enriquecer líderes, praticar ditaduras ferozes, para não falar das gritantes contradições e fantasias, censuras terríveis, mortes e assassinatos daqueles que não comungam das teorias da nomenclatura. Estes princípios chegaram até hoje. Por isso as contradições e fanatismos os impede de votar aqui o que aplaudem na China. Quando o PCP votou contra o prolongamento da Estado de Emergência, disse que o fazia para defender os direitos dos trabalhadores. Não explicou que tipo de trabalhadores, embora todos saibamos que se trata dos inscritos na CGTP. E sobre as diferenças na aplicação do estado de excepção entre Portugal e China, nem uma palavra. De facto, nós temos uma democracia; os pobres dos chineses têm uma autocracia. Nós temos António Costa como primeiro-ministro; eles têm Xi Jinping ping ping -  e este simples facto faz toda a diferença.


         - “O cidadão está em incomprimento” – português de polícia convencido da sua autoridade.