segunda-feira, abril 27, 2020


Segunda, 27.
Suspendi às 483 palavras esta manhã o romance. Não quero forçar o meu cérebro. Sei como ele sofre quando o coajo a exprimir-se como uma máquina impressora que vai amontoando as páginas impressas. Desta vez não tenho pressa. Sei que a escrita de O Matricida vai ser dolorosa, difícil e lenta e, nestas condições, tenho de estar em alerta para não resvalar para a tensão e daí à depressão. Mesmo assim, pouco depois de uma hora de trabalho, tive de enfiar um Valdispert.

         - Eu tenho uma colossal reserva quanto aos advogados. A quase todos não é a aplicação da justiça que lhes interessa, são as somas astronómicas que daí resultam. Uma maioria dos advogados é muito pouco instruída, mas há uma coisa que eles decoraram - as leis. Basta ler uma carta por eles remetida a um constituinte, para nos apercebermos do seu saber. As leis bem encerebradas são o seu poder e com frequência a mim atiram-me: “Oh, meu caro de leis percebo eu!” Mas perceber é uma coisa, e interpretá-las e ajustá-las à justiça outra. A primeira é automática e qualquer um que saiba ler as vomita; a segunda faz apelo à inteligência e ao coração. Eles são pragmáticos: “é da lei” e está tudo dito. Que pobreza de espírito, santo Deus!  

         - Carlos telefonou. Longa cavaqueira sobre a sua genialidade de artista. Eu acabei de emoldurar dois magníficos desenhos que ele me ofereceu e tão satisfeito estava com o resultado, que até lhe propus devolver-lhos. “O que se oferece, oferecido está.” Falei com a Alice, o Fortuna. E fui de roçadora atacar uma parte distante da quinta até à figueira maior. O mato aí é assustador. Mas não quero que o homem que virá cuidar do terreno chegue àquela zona, porque o ano passado rompeu-me o cano que trata a água da piscina. Tempo dividido: de manhã encoberto, á tarde uma poeira densa de sol. O Filipe que viu a foto da moda Covid-19, diz que eu pareço uma freira. Respondi que o coronavírus detesta as freiras – é fervoroso adepto de Xinping ping ping.