Quinta,
23.
A mancha
pletórica de vinha, estende-se além da estrada traçada entre oliveiras cortadas
para a plantação dos eucaliptos. Duas dessas preciosidades fui eu arrancá-las
ao fogo e são duas vaidosas donzelas que adornam o jardim e hoje me dão o
prazer de azeitonas que a Piedade sabe como ninguém transformar em um acepipe
delicioso. Com a decisão do corte dos eucaliptos, o meu vizinho rasgou
horizontes, o próprio céu, de forma a que ventos alísios não encontrem destino
e vaguem doidos pelo espaço sideral. A casa - esta que me abriga -, vista de
longe parece ter diminuído de volume em favor da planície que ficou enorme,
distendida e feliz. O próprio silêncio tornou-se cristalino, com um murmúrio
sibilado, que nos enche e redimensiona a nossa natureza definitivamente esculpida
no Todo.
- O meu amigo Nicolas, recentemente
formado, foi colocado no hospital central de Marselha. Acaba de ser contagiado com o coronavírus. É sempre penoso sabermos que um médico sofre da doença que
tentou evitar ou curar ao seu semelhante. Eu desde a infância que sei e por
isso a minha grande admiração por todos os clínicos, não só emocionalmente como
incondicional. A medicina é a fronteira entre a vida e a morte e os médicos os protectores
do sofrimento humano.
- O projecto editorial 20/20 mandou-me
um e-mail a convidar-me para entrar numa espécie de mesa redonda através da
Internet sobre como se concebe um livro, romance ou outro. Respondi deste modo:
“Por
muito respeito que me mereça o Sr. Paulo Ferreira - e merece -, e agradecendo à
Editora 20/20 o convite, adianto que a literatura e o escritor não se devem
submeter a este género de iniciativas, devendo antes no silêncio das horas
consagrar-se a criá-las com ou sem editor.”
- Quase conclui a limpeza do jardim. A
roçadora e eu temos uma sintonia tão perfeita do cansaço de uma e outro, que a gasolina
nos ordena no momento-limite a suspensão do trabalho. Longa conversa com Annie,
Robert e António Carmo. Feliz por viver aqui e do modo como vivo.