Quinta,
16.
Por
mor do que me aconteceu na segunda-feira, tive de me deslocar a Lisboa. Eu
explico. Ontem de manhã, no intervalo da chuva, decidi recomeçar a procurar os
óculos naquele matagal incrível. Para prevenir qualquer acidente, estive uns
largos momentos com uma forquilha a levantar a erva de modo a colher com esse
gesto os óculos. Só então me decidi prosseguir o trabalho de roçar com a
máquina um largo espaço no jardim onde estava sepultado o que me fazia falta. A
dada altura, vi um brilho no chão e, surpresa, eram os meus queridos óculos. Eu
devo ter-lhes tocado com o disco da roçadora, porque quando os tive nas mãos a
haste esquerda estava ligeiramente cerrada e o vidro desse lado não existia.
Mas encontrei-o ao cabo de poucos minutos e, oh milagre, perfeitamente intacto
sem qualquer risco. Telefonei de seguida à loja do Largo do Rato que me conhece
de tenra idade e à família desde o tempo do pai da actual proprietária. Esta
prontificou-se a receber-me e a ver o que podia fazer. Meti uma máscara na
mochila e ala que se faz tarde. Chegado à minha querida e saudosa estação do
Pinhal Novo, não vi vivalma. À medida que a hora de embarcar se aproximava,
juntou-se a mim uma senhora e entrámos ambos num comboio onde seguia apenas um
rapaz. Portanto, três passageiros naquela carruagem. Assim foi até Entrecampos,
com mais uns seis passageiros a entrar em Corroios e outros tantos no Pragal.
Quase todos de máscara (já lá vamos), excepto eu que não vi razão para colocar
a minha. Na gare do metro eu e um rapaz trolaró com o seu quê de tontinho,
coitadinho. Até ao Rato pouca gente, quase ninguém. A dona do estabelecimento,
estava na rua à minha espera e um largo sorriso substituiu o nosso beijo
tradicional (não fizemos como os políticos ridículos que tocam os cotovelos uns
dos outros). O conserto foi rápido e o valor um grande agradecimento e a
esperança que possamos todos voltar às nossas vidas habituais.
- Estando em Lisboa, na minha
insubstituível Lisboa, tratei de a percorrer do Parque Eduardo VII ao Chiado.
Tudo fechado, uma ou outra loja no CCC aberta, o Celeiro a funcionar, a
farmácia Barral também, o Rossio uma tristeza franciscana, tudo morto e
enterrado. Dei depois um salto ao Corte Inglês e ao lado à Nespresso (fechada).
Comprei o jantar, umas vitaminas, o Público e despachei-me para a Avenida de
Roma para tomar o comboio de volta a casa. Nesta artéria da cidade de velhos
gaiteiros, o movimento de carros era assustador. Para cima e para baixo, era
ver os idosos inchados de cagança ao volante
dos seus carros encerados, como se estivéssemos nos anos Setenta quando viver
ali era o supremo luxo pequeno-burguês fascizante daquelas almas garbosas e
provincianas. Hoje a avenida é de um lado e outro, um tombeau de mortos sorridentes, dentes amarelados do tabaco, memórias
repolhonas, onde o tempo estancou e criou bolor e murmúrios que os entretém até
ao estertor final. Conheci-as bem, essas criaturas de faz-de-conta, falidas e
pomposas, analfabetas e de esquerda, que viviam num mundo irreal onde não
admitiam a pobreza, eles que já eram por destino e condição uns pobres de espírito,
uns patetas alegres.
Metro de Entrecampos habitualmente a ferver de gente. |
Restauradores às quatro da tarde. |
- Mas ia a falar do chic das máscaras.
Abro parênteses para elogiar uma vez mais Graça Freitas, tão mal tratada no
Público de hoje por uma dondoca economista. Bom. Vi, com efeito, muita gente
mascarada e conclui que o uso da máscara vai ser o arranque para novo surto de
coronavírus. Registem isto que vos digo. E porquê? Porque a maneira como vejo
por todo o lado usar a peça que devia ser protectora, estar a ser utilizada
como adorno. Vi pessoas que a baixavam até ao pescoço para falarem, outras que
a seguravam no toutiço como fazem com os óculos de sol, outras que abriam a
máscara como quem corre a cortina do quarto de dormir, outras que a traziam
enrugada e suja, húmida e mal própria. Se a isto se juntar a ideia que todos se
sentem livres de contágio andando mascarados e não de máscaras, temos o risco
que nos conduzirá ao desastre. Acresce que, sentindo-se fora de perigo, não
lavam as mãos, falam frente a frente, tiram e põem a peça, observei de tudo. Outra
reflexão. Se todos os dias, a diarreia das sabichonas e sabichões entendidas em
tudo, derramada nos ecrãs de televisão em golfadas nauseabundas, não consegue fazer-se
ouvir por espectadores pasmados e viciados em televisão, como se poderá educar tanto
ignorante?
- Muita
chuva e rajadas fortes de vento. Um frio corre lembrando-nos o Inverno que se
recusa a sair de cena. À parte leituras, nada mais de útil consegui fazer hoje.