quinta-feira, abril 16, 2020

Quinta, 16.
Por mor do que me aconteceu na segunda-feira, tive de me deslocar a Lisboa. Eu explico. Ontem de manhã, no intervalo da chuva, decidi recomeçar a procurar os óculos naquele matagal incrível. Para prevenir qualquer acidente, estive uns largos momentos com uma forquilha a levantar a erva de modo a colher com esse gesto os óculos. Só então me decidi prosseguir o trabalho de roçar com a máquina um largo espaço no jardim onde estava sepultado o que me fazia falta. A dada altura, vi um brilho no chão e, surpresa, eram os meus queridos óculos. Eu devo ter-lhes tocado com o disco da roçadora, porque quando os tive nas mãos a haste esquerda estava ligeiramente cerrada e o vidro desse lado não existia. Mas encontrei-o ao cabo de poucos minutos e, oh milagre, perfeitamente intacto sem qualquer risco. Telefonei de seguida à loja do Largo do Rato que me conhece de tenra idade e à família desde o tempo do pai da actual proprietária. Esta prontificou-se a receber-me e a ver o que podia fazer. Meti uma máscara na mochila e ala que se faz tarde. Chegado à minha querida e saudosa estação do Pinhal Novo, não vi vivalma. À medida que a hora de embarcar se aproximava, juntou-se a mim uma senhora e entrámos ambos num comboio onde seguia apenas um rapaz. Portanto, três passageiros naquela carruagem. Assim foi até Entrecampos, com mais uns seis passageiros a entrar em Corroios e outros tantos no Pragal. Quase todos de máscara (já lá vamos), excepto eu que não vi razão para colocar a minha. Na gare do metro eu e um rapaz trolaró com o seu quê de tontinho, coitadinho. Até ao Rato pouca gente, quase ninguém. A dona do estabelecimento, estava na rua à minha espera e um largo sorriso substituiu o nosso beijo tradicional (não fizemos como os políticos ridículos que tocam os cotovelos uns dos outros). O conserto foi rápido e o valor um grande agradecimento e a esperança que possamos todos voltar às nossas vidas habituais. 

         - Estando em Lisboa, na minha insubstituível Lisboa, tratei de a percorrer do Parque Eduardo VII ao Chiado. Tudo fechado, uma ou outra loja no CCC aberta, o Celeiro a funcionar, a farmácia Barral também, o Rossio uma tristeza franciscana, tudo morto e enterrado. Dei depois um salto ao Corte Inglês e ao lado à Nespresso (fechada). Comprei o jantar, umas vitaminas, o Público e despachei-me para a Avenida de Roma para tomar o comboio de volta a casa. Nesta artéria da cidade de velhos gaiteiros, o movimento de carros era assustador. Para cima e para baixo, era ver os idosos inchados de cagança ao volante dos seus carros encerados, como se estivéssemos nos anos Setenta quando viver ali era o supremo luxo pequeno-burguês fascizante daquelas almas garbosas e provincianas. Hoje a avenida é de um lado e outro, um tombeau de mortos sorridentes, dentes amarelados do tabaco, memórias repolhonas, onde o tempo estancou e criou bolor e murmúrios que os entretém até ao estertor final. Conheci-as bem, essas criaturas de faz-de-conta, falidas e pomposas, analfabetas e de esquerda, que viviam num mundo irreal onde não admitiam a pobreza, eles que já eram por destino e condição uns pobres de espírito, uns patetas alegres.

Metro de Entrecampos habitualmente a ferver de gente.

Restauradores às quatro da tarde.  
         - Mas ia a falar do chic das máscaras. Abro parênteses para elogiar uma vez mais Graça Freitas, tão mal tratada no Público de hoje por uma dondoca economista. Bom. Vi, com efeito, muita gente mascarada e conclui que o uso da máscara vai ser o arranque para novo surto de coronavírus. Registem isto que vos digo. E porquê? Porque a maneira como vejo por todo o lado usar a peça que devia ser protectora, estar a ser utilizada como adorno. Vi pessoas que a baixavam até ao pescoço para falarem, outras que a seguravam no toutiço como fazem com os óculos de sol, outras que abriam a máscara como quem corre a cortina do quarto de dormir, outras que a traziam enrugada e suja, húmida e mal própria. Se a isto se juntar a ideia que todos se sentem livres de contágio andando mascarados e não de máscaras, temos o risco que nos conduzirá ao desastre. Acresce que, sentindo-se fora de perigo, não lavam as mãos, falam frente a frente, tiram e põem a peça, observei de tudo. Outra reflexão. Se todos os dias, a diarreia das sabichonas e sabichões entendidas em tudo, derramada nos ecrãs de televisão em golfadas nauseabundas, não consegue fazer-se ouvir por espectadores pasmados e viciados em televisão, como se poderá educar tanto ignorante?

         - Muita chuva e rajadas fortes de vento. Um frio corre lembrando-nos o Inverno que se recusa a sair de cena. À parte leituras, nada mais de útil consegui fazer hoje.