Sábado, 20.
Quando o João Corregedor entrou na
Brasileira de fato completo e gravata todos desataram a gozá-lo, eu disse-lhe
que se tinha enganado na porta, que o Parlamento ficava mais abaixo. Ele sentou-se
a meu lado, abatido. Perguntei-lhe se estava doente, disse que não. Se tinha
falta de dinheiro, outra negativa. “Então que tens” disparei, inquieto. “Nada.
Coisas. Não estou bem.” Deixámo-lo entregue aos seus problemas e ao “pasquim”
do Público que o Vergílio tinha comprado, prosseguindo nós as nossas conversas
como se ele não existisse. À hora das papas, meio-dia em ponto, todo o grupo
debandou para o Príncipe, Corregedor e eu ficámos à espera do Guilherme que
telefonou a dizer que não tardava. Este chegou daí a instantes, trazendo no
bico a mensagem daqueles que se cruzaram com ele no caminho, que nos juntasse-mos
a eles no restaurante. Mas João detesta o Príncipe por ser muito barulhento (os
outros disseram-me que o nosso deputado se havia envolvido com o dono do
estabelecimento). Bom. Sugeri então a Adega da Mó que Corregedor disse há anos que
lá não ia. Infelizmente o meu melieiro patrão, senhor Pinto, havia encerrado o
restaurante para férias. E agora? Os meus amigos entupiram, não sabendo aonde
ir. Antes que eles se pusessem a pensar em sítios upa upa, apontei para o
Nicola. Todos de acordo, Corregedor acrescentando um pormenor: “Almoçamos na
cave.” No velho café, a esplanada abarrotava de turistas e o interior não tinha
senão dois vetustos homens sentados à entrada. Mas a climatização estava a fundo,
portanto, agradável de se estar. Descemos as escadas de mármore, curvámos à
direita, e entrámos literalmente no século XIX. Uma divisão relativamente
pequena, sem janelas, as paredes revestidas a tafetá e tecidos de cores onde os
odores de séculos se tinham encrustado, quase sem espaço para nos movermos, as
cadeiras forradas de um tecido Anos Vinte, e sem vivalma. Abancámos. O
empregado fardado trouxe-nos a ementa, mas eu sentia-me de tal modo mal naquele
cemitério de múmias acantonadas, que disse aos meus convivas: “Vamos daqui. Almoçamos
lá em cima próximo do Bocage com quem sempre me entendi.” Espanto, temores do
parece mal, que dirá o criado. “Ainda por cima – disse – lá em cima está mais
fresco.” Aí vamos nós, sem que o Guilherme se escusasse junto do empregado. Este,
lesto, respondeu: “Por quem sois! No piso de cima está mais fresco.” Instalámo-nos
ao lado da figura do poeta. Olhada com desdém a lista dos pratos, não havendo
peixe, fomos os três para a carne que todos detestamos: eles para o bife de vaca
com molho não sei quê, eu para duas fatias de porco assado com puré de maçã.
Ninguém entrou nos vinhos porque o preço já ia elevado. Corregedor para
sobremesa quis café com pastel de nata e nós seguimos-lhe os gostos. No final
só eu estava satisfeito. Eles detestaram o prato. Entrámos antes da uma, saímos
depois das quatro da tarde. Quero dizer, João e eu, porque o Guilherme saltou
uma hora antes. A conversa a três e de seguida a dois, valeu muitíssimo mais
que o ágape de uma banalidade de tasca a preço do Lasarte, 25 euros cada um. João
e eu somos grandes conversadores, vivemos nos mesmos meios, conhecemos as
mesmas pessoas, passámos pelas mesmas situações e essa vida cheia como um ovo
de avestruz, é um manancial de experiências e conhecimentos, que não se esgotam
em anos de cavaqueira. Foram tantas as personagens que por lá passaram, tanta a
vertigem de um tempo pleno, que seria enfadonho voltar a trazê-las a esta
página onde gostaria contudo de dizer como Pablo Neruda: “Confesso que vivi.”
- Nós temos o salutar hábito de entrar com o nosso deputado. Ao pé dele,
há sempre um pavio de política pronto a atear. Falou-se da ideia macabra do PS
querer fiscalizar os portugueses através das suas contas bancárias e também do
escândalo do faz e desfaz da CGD montado pelos socialistas como sempre fiéis a
si próprios e prontos a ajudar o camarada necessitado de uns eurozitos. Os
artistas diziam-lhe que o PC tinha que ter tino e manter-se firme, apesar das
investidas de António Costa em políticas que eles não aprovam. Para tanto –
afirmavam - Costa anda sempre com a fotografia de Passos Coelho na carteira e
quando os comunistas ameaçam desistir da coligação, o primeiro-ministro retira
do bolso a fotografia e pergunta: “Vocês preferem este?” Eu provoquei-o
dizendo-lhe que quem escreve os discursos do Secretário Geral do PCP, é ele. O
meu amigo não se descompôs e atira-me: “O Jerónimo, falando de improviso, tem
um português perfeito e não precisa de quem lhe faça os discursos.” Com o que
eu concordo e acrescento: o operário fabril fala um português impecável, melhor
que esses “doutores” que se pavoneiam por todo o lado, saídos dos serões da marrequinha
na TVI.