sábado, agosto 20, 2016

Sábado, 20.
Quando o João Corregedor entrou na Brasileira de fato completo e gravata todos desataram a gozá-lo, eu disse-lhe que se tinha enganado na porta, que o Parlamento ficava mais abaixo. Ele sentou-se a meu lado, abatido. Perguntei-lhe se estava doente, disse que não. Se tinha falta de dinheiro, outra negativa. “Então que tens” disparei, inquieto. “Nada. Coisas. Não estou bem.” Deixámo-lo entregue aos seus problemas e ao “pasquim” do Público que o Vergílio tinha comprado, prosseguindo nós as nossas conversas como se ele não existisse. À hora das papas, meio-dia em ponto, todo o grupo debandou para o Príncipe, Corregedor e eu ficámos à espera do Guilherme que telefonou a dizer que não tardava. Este chegou daí a instantes, trazendo no bico a mensagem daqueles que se cruzaram com ele no caminho, que nos juntasse-mos a eles no restaurante. Mas João detesta o Príncipe por ser muito barulhento (os outros disseram-me que o nosso deputado se havia envolvido com o dono do estabelecimento). Bom. Sugeri então a Adega da Mó que Corregedor disse há anos que lá não ia. Infelizmente o meu melieiro patrão, senhor Pinto, havia encerrado o restaurante para férias. E agora? Os meus amigos entupiram, não sabendo aonde ir. Antes que eles se pusessem a pensar em sítios upa upa, apontei para o Nicola. Todos de acordo, Corregedor acrescentando um pormenor: “Almoçamos na cave.” No velho café, a esplanada abarrotava de turistas e o interior não tinha senão dois vetustos homens sentados à entrada. Mas a climatização estava a fundo, portanto, agradável de se estar. Descemos as escadas de mármore, curvámos à direita, e entrámos literalmente no século XIX. Uma divisão relativamente pequena, sem janelas, as paredes revestidas a tafetá e tecidos de cores onde os odores de séculos se tinham encrustado, quase sem espaço para nos movermos, as cadeiras forradas de um tecido Anos Vinte, e sem vivalma. Abancámos. O empregado fardado trouxe-nos a ementa, mas eu sentia-me de tal modo mal naquele cemitério de múmias acantonadas, que disse aos meus convivas: “Vamos daqui. Almoçamos lá em cima próximo do Bocage com quem sempre me entendi.” Espanto, temores do parece mal, que dirá o criado. “Ainda por cima – disse – lá em cima está mais fresco.” Aí vamos nós, sem que o Guilherme se escusasse junto do empregado. Este, lesto, respondeu: “Por quem sois! No piso de cima está mais fresco.” Instalámo-nos ao lado da figura do poeta. Olhada com desdém a lista dos pratos, não havendo peixe, fomos os três para a carne que todos detestamos: eles para o bife de vaca com molho não sei quê, eu para duas fatias de porco assado com puré de maçã. Ninguém entrou nos vinhos porque o preço já ia elevado. Corregedor para sobremesa quis café com pastel de nata e nós seguimos-lhe os gostos. No final só eu estava satisfeito. Eles detestaram o prato. Entrámos antes da uma, saímos depois das quatro da tarde. Quero dizer, João e eu, porque o Guilherme saltou uma hora antes. A conversa a três e de seguida a dois, valeu muitíssimo mais que o ágape de uma banalidade de tasca a preço do Lasarte, 25 euros cada um. João e eu somos grandes conversadores, vivemos nos mesmos meios, conhecemos as mesmas pessoas, passámos pelas mesmas situações e essa vida cheia como um ovo de avestruz, é um manancial de experiências e conhecimentos, que não se esgotam em anos de cavaqueira. Foram tantas as personagens que por lá passaram, tanta a vertigem de um tempo pleno, que seria enfadonho voltar a trazê-las a esta página onde gostaria contudo de dizer como Pablo Neruda: “Confesso que vivi.”


         - Nós temos o salutar hábito de entrar com o nosso deputado. Ao pé dele, há sempre um pavio de política pronto a atear. Falou-se da ideia macabra do PS querer fiscalizar os portugueses através das suas contas bancárias e também do escândalo do faz e desfaz da CGD montado pelos socialistas como sempre fiéis a si próprios e prontos a ajudar o camarada necessitado de uns eurozitos. Os artistas diziam-lhe que o PC tinha que ter tino e manter-se firme, apesar das investidas de António Costa em políticas que eles não aprovam. Para tanto – afirmavam - Costa anda sempre com a fotografia de Passos Coelho na carteira e quando os comunistas ameaçam desistir da coligação, o primeiro-ministro retira do bolso a fotografia e pergunta: “Vocês preferem este?” Eu provoquei-o dizendo-lhe que quem escreve os discursos do Secretário Geral do PCP, é ele. O meu amigo não se descompôs e atira-me: “O Jerónimo, falando de improviso, tem um português perfeito e não precisa de quem lhe faça os discursos.” Com o que eu concordo e acrescento: o operário fabril fala um português impecável, melhor que esses “doutores” que se pavoneiam por todo o lado, saídos dos serões da marrequinha na TVI.