domingo, agosto 14, 2016

Domingo, 14.
Quando sexta-feira entrei na Brasileira, tinha meio mundo à minha espera: dois jornalistas, três pintores, dois escultores e mais não sei quem. Assim que abanquei ferveram as palavras de reconhecimento pelo texto que escrevi sobre a pintura do Guilherme Parente. Diziam que estava bem escrito, que tinha conteúdo original, que os presentes gostariam de alguém que escrevesse sobre eles daquele modo sabedor. Senti uma espécie de orgulho e inibição. Parecia que estava a ser condecorado com o Nobel e o cheque da Academia de Estocolmo de novecentos mil euros me tinha sido outorgado. Disse-lhes: “Que exagero! Até parece que acabei de ganhar o Nobel de Literatura! Primeiro, não sabia o que fazer a tanto dinheiro; depois, a glória não me servia para nada, se tivermos em conta que poucos são os laureados que continuam a ser lidos.” Estrepitosa gargalhada.

         - Almocei na Adega da Mó. Que prazer! Que simplicidade culinária! Que ambiente acolhedor e bem português quando Portugal venerava os sólidos e aprazíveis pratos nacionais! O senhor Pinto, do alto da sua proveta idade, está ao leme do restaurante. Para a mesa veio um arroz de grelos com peixinhos fritos, uma cerveja e a rematar uma saborosa fatia de melão. Tudo bem fresco, cozinhado qb, servido em travessas decoradas. Os estrangeiros que portanto por ali cirandam não o escolhem, preferindo a cozinha dita internacional que é igual àquela com que se empanturram todos os dias nos seus países e é de uma pobreza doentia. Banalidade de viajantes.

         - No Rossio deparei-me com uma manifestação dos emigrantes atingidos pelas safadezas do BES. Pareciam uma corja de maltrapilhos, um grupo de saltimbancos, representando para uma plateia que detestava o ruído das latas, dos apitos, dos guizos, dos cláxones e das bandas escritas ao correr do desespero.

         - Os fogos continuam para deleite das televisões. Num país onde não se passa nada, temos hora e meia de noticiários. O resultado é a chateza de vermos e revermos os mesmos dramas, os mesmos lugares, as mesmas pessoas aflitas, os mesmos repórteres tirados a papel químico de uma banda de desenhos animados escrita no Haiti, aqueles rostos dos apresentadores finjamente compungidos, a longa agonia de um serviço que não serve para coisa nenhuma, senão para enriquecer os canais, que pagam aos colaboradores pela tabela mínima. Se tivermos em conta o que se passa antes e depois – concursos, programas para entreter as donas de casa ociosas e com arrebiques nostálgicos e devotos, telenovelas – temos o panorama sublime de um país culto, letrado, educado, civilizado, mas... ao jeito das direcções televisivas. Da bambochada, salva-se (ligeiramente) a RTP2. Eu pago a respectiva taxa compulsivamente e com nojo àquilo tudo. Como todas as televisões são um ninho de quecas rápidas (da fama não se livram!), espero que ao menos elas e eles, tenham algum prazer na cedência do corpo e mostrem em consequência nos ecrãs os rostos felizes do que lhes acontece atrás das câmaras... mas infelizmente nem isso.

         - Acresce que quando temos o hábito de acompanhar os telejornais nas estações estrangeiras, verificamos desde logo a atitude dos jornalistas, a forma como se acomodam na cadeira, como estão corporalmente, a expressão do rosto, tudo desde o começo nos diz que eles estão ali por alguns minutos com o propósito de informar o que de essencial aconteceu no mundo.


         Ao contrário, por cá, neste país avançado a todos os níveis, o que observamos é desde logo o conforto das cadeiras, a maneira como o corpo do pivot se acomoda nelas, um laivo de importância a sobressair do rosto que nos diz “aqui estou eu, jornalista de primeira, para duas horas de entretenimento sobre o que aconteceu no mundo” (há até um que se dá ao desvario de nos piscar o olho). Os noticiários querem-se, portanto, ao mesmo nível dos programas de passatempo: íntimos, familiares, mediocríssimos, uma espécie de lavagem da roupa suja que não cabe nas casas dos espectadores. Entretanto, nas quase duas horas que o espectáculo dura, acontecem dramas humanos, os políticos vaidosos vieram aos ecrãs com as baboseiras costumeiras, o Daesh matou mais uns quantos inocentes, milhões de pessoas são ignoradas nas suas vidas pobres ou no limiar da pobreza, uma invenção científica teve lugar algures, um livro saiu para gáudio da Literatura, mas o jornalista continua impávido diante da televisão a gozar o seu quotidiano momento de glória.