quarta-feira, agosto 17, 2016

Quarta, 17.

Para me defender de futuros aproveitamentos e franquear aos leitores deste blogue um capítulo original do romance em que nesta altura trabalho, aqui deixo em primeira mão este excerto.

         
         Vigésimo Sexto Dia.

         Confesso que, não obstante os sustos provocados pela imprensa, rádio e televisão, todos os dias e a qualquer hora, avisando-nos para a desgraça que a crise nos trará, o número de interessados na casa impressionou-me. Consoante o meu estado de espírito no momento da recepção das chamadas, assim fui mandando vir ou recusando os futuros proprietários. E tem havido de tudo. Os que apenas ouvem o preço e desligam logo, aqueles que se põem a negociar o valor antes de verem o apartamento. Contudo, o caso mais surpreendente aconteceu ontem pela uma da madrugada quando me encontrava a consumir o tempo na Net. Um homem com voz decidida, daqueles que estão habituados a mandar e quase não ouvem quem têm na frente, insistia comigo para que o deixasse conhecer estas divisões. Batalhei durante muito tempo e estive mesmo para lhe pregar com o telefone na cara, porque ignorando os meus naturais argumentos quanto à hora tardia, insistia para que lhe abrisse a porta. Não sei porque carga de água, a dado momento, o indivíduo pôs na cabeça que a minha recusa se prendia com o preço. E indignado, dizia: “Olhe, de olhos fechados, ofereço-lhe o dobro!” Pensei: “Mais um tarado!” Depois, à medida que a conversa estabilizara e o tom de voz ficara mais cordato, comecei a ter dúvidas. No fundo de mim foi crescendo o desejo sublimar de conhecer um tipo com aquelas características destravadas, que telefona em plena noite como se estivesse no seu gabinete de trabalho ao meio-dia. Acresce que o sujeito, entre estados de alma exaltados e quebras por onde se infiltrava uma leve textura de simpatia, talvez provocada pelo cansaço, mas ainda assim, a mim me parecia, suficientemente credível para me oferecer a confiança de que carecia para ousar recebê-lo. Cauteloso, fui estendendo as hesitações, arrastando a conversa, enrolando os números, ora para cima, ora para baixo, num jogo que me permitia decidir se o mandava avançar ou não. Quase desisti quando o ouvi dizer que vinha só, embora fosse casado e tivesse dois filhos, uma rapariga e um rapaz. Mas o homem sossegou-me perguntando-me se achava normal aparecer com a mulher e os filhos àquela hora tardia. “Veja se me compreende. Tenho uma vida muito stressante, dirijo três empresas e ainda tenho o partido com reuniões muitas vezes na semana até de madrugada. Só possuo cabeça para me ocupar dos meus assuntos pessoais a esta hora. Durante o dia o telefone não pára. Tocam todos ao mesmo tempo desde que inventaram os telemóveis.” Às tantas deixámos de conversar sobre o motivo que o levara a contactar comigo, para discorremos sobre a sua vida complexa de homem de negócios. Quem estivesse de parte, o leitor, por exemplo, pensaria tratar-se de dois amigos de muitos anos. O facto porém, é que à medida que a noite ia chegando à madrugada e o cansaço, o meu pelo menos, me deixava mais fragilizado e aligeirado de todos os temores, fui-me aproximando daquele desconhecido com a mesma cumplicidade de dois criminosos. Esquecera, a dada altura, como começara o nosso encontro. Em pouco tempo sabia quase tudo sobre ele, sem abrir nada acerca de mim. Foi pois com enorme ansiedade que vivi os instantes que me pareceram uma eternidade que precederam a sua chegada. Recordo-me de ter consultado o relógio do mostrador inúmeras vezes. Depois, qual donzela prendada, pus-me a arranjar os objectos espalhados pela casa como é apanágio dos apartamentos onde falta uma mão feminina. Fui à janela e delicadamente afastei a cortina de tule para ver como estava o céu estrelado, quem passava na rua, que cor tinham os prédios àquela hora tardia do início da vida. Perante o silêncio que tudo escondia debaixo dos cobertores da estultícia, sentei-me no sofá confortável da sala e esperei. Estavas para chegar, era uma sexta-feira de chuva, trovões, relâmpagos, tumultos de trânsito, fugas rápidas para todos os cantos da cidade. Eu tinha o jantar na mesa, duas velas preparadas para te receber, ainda não havia desligado o gira-discos onde corria uma árida de Wagner para ligar a televisão como apreciavas. Tempo jubiloso, esse! Um colete de felicidade envolvia o meu corpo pronto a receber-te, no ar pairava por entre as lucubrações de todos os discursos, um sentimento eterno, uma chama sensual que bruxuleava por toda a casa. Essências chinesas postas ao início da tarde, voavam ainda transformando a atmosfera num lugar sagrado. Quando senti a chave correr na lingueta da fechadura, estremeci. Levantei-me num ápice e fui receber-te com um abraço tão forte, tão desejado que ficámos por alguns minutos estreitados com a porta aberta para o hall onde um vizinho havia chamado o elevador. Vinhas molhado, transformado num ser frágil que apetecia proteger. Fui encher a banheira e vi-te entrar nela com a graça e a virilidade de um deus antigo. Sorrias. Que tinha aquele sorriso no teu rosto cansado e suado ainda hoje não encontro palavras para o descrever! Não sei se algum artista tem poder, talento, inspiração, o que for que se lhe queira chamar para apelar ao chamamento dos sentimentos na hora do anúncio do Verbo. Sei que se ficasse aqui um mês, um ano não encontraria no meu cérebro a frase que traduzisse o estado excelso vivido naquele instante. De tal modo que ainda hoje me parece, que ele resumiu numa miríade a soma dos anos passados em união. Quando senti um carro estacionar mesmo debaixo da minha varanda num lugar deixado vago por um vizinho que sei trabalhar como segurança num banco, assomei para ver quem vinha. Tive logo a certeza de ser ele, o meu interlocutor noctívago. E apercebi no lusco-fusco da rua, uma silhueta esbelta, vestido à maneira dos adolescentes, talvez mais requintado mas nem por isso menos descontraído. A fim de não alertar os vizinhos, carreguei no botão para abrir a porta e escutei nervoso o elevador subir ao meu andar. Uns segundos passaram e eis o visitante número treze com um ar fresco como se tivesse acabado de sair do banho, o cabelo húmido, uma essência requintada a resina diante de mim. Convidei-o a entrar. Indiquei-lhe o grande sofá na sala e sentei-me eu numa das duas cadeiras Luís XV que compunham o decore. O homem elogiou com palavras simpáticas o aposento, alongou depois um olhar tímido para a divisão anexa e exclamou: “Bom gosto, sim senhor!” A seguir caiu entre nós um silêncio desconfortável como se o motivo que o trouxera ali fosse apenas aquela constatação. Nessa altura, levantei-me e fui à cozinha fazer café. Fui breve a tal ponto que só quando coloquei a bandeja na mesa de apoio, vi que não tinha coberto o fundo com o naperon que a minha mãe havia bordado para o efeito. De rompante, como um dependente a quem a droga provoca abalos físicos, engoliu de um trago a bebida. “Posso saber, se não sou indiscreto, por que motivo se desfaz desta maravilhosa casa?” Falava pausadamente enquanto o olhar viajava pela divisão. “Não pode. Isso é um assunto que só a mim diz respeito.” Endireitou-se no sofá e murmurou: “Com certeza. Desculpe.” Um fosso profundo precipitou por aí abaixo o desconforto nascido da minha resposta. Olhei-o num instante em que distraído passava os olhos por um molho de revista médicas que eu tinha afastado quando pousei a bandeja. Pelo semblante, percebia-se que se sentia infeliz, que qualquer coisa o havia magoado. Quis refazer o mal e acrescentei: “Sabe a vida dá muitas voltas. Nunca nos podemos sentir seguros de coisa nenhuma. De um dia para o outro as grandes fortunas transformam-se em trocos que não dão sequer para acudir aos pobres.” Sorriu. “A quem o diz! Não sei o que faz na vida e também não vou querer saber porque já vi que é muito sensível a determinadas perguntas. Devo, contudo, concordar consigo. A minha própria vida é disso exemplo. Nascido nos negócios, depressa conclui que nada está adquirido. A luta é constante e o cansaço também.” As suas palavras pareciam, pelo menos aos meus ouvidos e ao sereno da noite, soletradas com aquela dose de peso que introduz em tudo quanto dizemos a partir de certas horas tardias, um tom de certeza onde não está ausente a amargura. “Posso pedir-lhe mais um café?” Abandonei a sala e voltei num segundo com outra chávena cheia. Desta vez, ele saboreou-a em pequenos golos, travado de satisfação. Era visível que estava mais descontraído, que viera para passar a noite comigo, como dois amigos de longa data. “Posso, ao menos, fazer-lhe uma pergunta para si talvez demasiado indiscreta? Poder pode. A resposta é que não lhe garanto estar à altura da pergunta.” Riu-se mostrando duas enfiadas de dentes de uma alvura impressionante. Só então me apercebi da sua beleza. O riso denotava um certo princípio civilizacional, sem expor a estridência própria das gentes simples para quem a satisfação sonoramente explicita é pronuncio de agrado e entrega. O corpo levemente inclinado para a direita, uma perna sobre a outra, o conjunto de uma elegância que traduzia o estudo de modos consentâneos com uma educação aprimorada. Falava pausadamente, nunca deixando o sorriso que se insinuava através dos traços aperfeiçoados por gerações. “Posso perguntar-lhe se é casado?” A questão não teve direito ao confronto de olhares enunciando talvez a timidez que eu havia detectado assim que o vira entrar. “Para ser franco não sei responder. - Curiosa resposta”, disse ele formulando a pergunta de outra maneira: “Alguma vez foi casado?” Aquele modo directo, incomodou-me. Como se alguém me empurrasse pelas costas para a via-férrea no momento em que o comboio entrava na estação. Senti pavor. Não tanto por responder com verdade, mas porque não gosto de ser despido na praça pública. Dir-me-á o leitor que não há nada de mal em tal invasão pessoal. Eu respondo: talvez. De facto, devido à minha educação, aprendi a trazer para o meu mundo o mundo dos outros em aproximações, sobriedade, tacteando as sensibilidades que se encontram estampadas em cada rosto. Costumo ler no mapa da cara a organização interior das emoções, as zonas de sombra onde se esconde a dúvida e se manifesta a mentira. Como médico, essa capacidade veio com o tempo, sobretudo em situações limite quando a alma humana despe completamente as roupas humedecidas do suor da aflição e se expõe para lá do imaginável. Por isso, limitei-me a dizer: “Sim. Já fui casado.” O homem mudou de posição. Apoiou o cotovelo esquerdo sobre o braço do sofá e perguntou se podia acender um cigarro. Tirou o maço de uma pequena mala que só nesse momento dei conta que trouxera consigo, estendeu-mo. Aceitei a oferta e ambos ficámos durante algum tempo saboreando sem uma palavra o aroma do tabaco. Nenhum de nós estava incomodado com a imobilidade das horas, na sala fechada à tristeza da tua ausência. Depois, quase extinto o fino prazer, ele falou: “Pelo que vejo a felicidade também não o tem acompanhado. – Também…”, disse eu pouco seguro de mim. Sorriu voltando a mostrar a fieira de dentes brancos como a cal. Parecia mais descontraído, embalado pelo diálogo que a pouco e pouco ia desbravando as mágoas ocultas. Sem pedir autorização, levantou da mesa próxima um número da revista Science. “Por muito que queira esconder-se, não é difícil perceber que é médico. A sua casa tresanda a remédios e a literatura médica está por todo o lado. – Digamos… que já fui. Nesta altura encontro-me suspenso. – Descanse que não lhe vou perguntar porquê”, acrescentou num tom malicioso. Ambos rimos tocados por aquela súbita franqueza que se prorrogara entre nós. O coração, por vezes, parece enferrujado e só parte à descoberta das confidências quando fulminado pelo encanto fraterno da palavra certa no momento adequado. Às vezes é mais loquaz com desconhecidos, como se o imprevisto servisse melhor ao segredo onde gosta de se acoitar. Lembrei-me que na cozinha havia o que restava de uma garrafa de uísque e perguntei-lhe se aceitava uma bebida. Intuitivamente imaginava que ele era homem de copos, não digo de bebedeira, mas do copito social que quase sempre só serve as mãos caídas no desamparo do corpo. Logo que deixei sobre a mesa a garrafa e os cubos de gelo, serviu-se de uma boa medida e, recostando-se no sofá, atirou: “Você é uma simpatia. Além de simpático, é elegante.” Em jeito de agradecimento, respondi: “Você também não fica atrás.” Depois começou um longo monólogo que parecia não me ser dirigido, como se, àquela hora da madrugada, as reminiscências fossem uma espécie de dor que latejava e fazia doer para além do suportável. Disse que ficara órfão de pai muito cedo e fora educado por um harém de tias solteiras e uma mãe ausente, perdida algures entre a saudade do marido e o saco de medicamentos que transportava sempre consigo. O contributo das tias trouxe-lhe isolamento e vontade de ser outro daquele que elas se obstinaram em obter. Aos dezasseis anos já tinha vivido quase tudo. Sobretudo havia aprendido que a solidão favorece mais do que desorienta. Aprendera a organizar-se em função de duas vidas que corriam paralelas, mas profundamente opostas: a da rua e a do lar. Uma escondia da outra os acontecimentos relevantes, ambas falavam uma língua que não tinha correspondência nem sentido entre si, obrigando-o a adaptações constantes, a medos e a jogos promíscuos. Um pouco mais tarde, sob o coro do choro das tias inconsoláveis, a mãe incapaz de o conter, decidiu entregá-lo aos cuidados dos padres salesianos internando-o num colégio situado longe das cidades, em pleno campo, a uma hora de distância de qualquer civilização digna desse nome. O casarão erguia-se imponente no alto de uma colina, onde o vento circulava durante todo o ano atraído pelas árvores gigantescas que entoavam um cântico umas vezes sinistro outras vezes embalador. A pequena povoação em baixo, vivia em sua função e eram os rapazes que aos fins-de-semana lhe davam vida e energia. Não soube dizer quantos internos havia nesse edifício que ele julgava ser do séc. XVIII, mas adiantou mais de duas centenas, agrupados por idades. Disse, com a voz obstruída de cansaço, que ainda hoje tem nos ouvidos o grito do vento nas longas noites dos invernos nunca esquecidos da sua adolescência rebelde. Contou que ele e mais uns quantos camaradas saltavam pelas janelas traseiras a meio da noite para se juntarem a um grupo de marginais que disseminavam o pavor na povoação. Disse ainda que o que mais o irritava era a antecipação do jantar e o recolher às vezes com a luz do dia a insinuar-se no perfil do horizonte. Concordou que vem desse tempo o hábito de aproveitar a noite no máximo da sua extensão e fulgor, ainda que muitas vezes sofra perturbações nervosas, desajustes temperamentais e alterações de memória. Nem, contudo, tudo foram dissabores. Guarda no coração o aluvião de colegas que a horas certas cumpriam religiosamente os estatutos do colégio, vê através da memória que lhe consente rasgos imprevisíveis de acenos, o campo de futebol onde costumava travar renhidas partidas e onde destilava impropérios e raivas a propósito das injustas situações do jogo, recorda como se fosse hoje as refeições na grande sala do refeitório, com todos os alunos presentes, dos mais velhos aos mais novos, como se de uma família se tratasse, aquele fundo de vozes cristalinas que ondeava através das mesas compridas e permanecera estranhamente dentro de si, imobilizando o tempo, travando a decadência, até esta noite perdida no fundo do nada. Também não esquece as sessões de masturbação, rente ao muro que dava para a cerca plantada de citrinos. A equipa de rapazes que se entregava a essa prática dava pelo nome de “os punheteiros” e os exercícios consistiam em saber quem, por um lado, aguentava mais tempo e por outro possuía o jacto de esperma mais longo. Pelo que entendi (ele não o disse claramente) qualquer das situações não era o seu forte. Mas falou que se lembrava de camaradas que atingiam o muro a meio metro de distância. “Esses deviam comer doses cavalares de laranjas que acreditavam davam força e produziam sémen abundante”, acrescentou rindo-se. Devido ao seu comportamento bravo, passava muitos dias fechado numa sela depois de ser chicoteado com o cinto do gordo vigilante. Estranhamente não guarda ódio a esse bruto atormentado pela disciplina que dizia ser a alavanca do homem do futuro. Pelo contrário, pensa, talvez tenha sido nesses longos dias de isolamento, com a serra a derramar silêncios para o vale, que começou a sentir crescer dentro de si os alvores do ser que hoje é. A chegada dos sentimentos, a confusão dos sentidos, a explosão sensual, a escolha que neste aspecto teve de fazer, confundiram-no a um ponto que julgou endoidecer. Um pouco como me aconteceu a mim, imagino, quando deixei a minha mulher e me encontrei na rua perdido de entusiasmos e descrenças. Foi, portanto, com indiferença que aceitou a expulsão. A mãe e duas tias vieram buscá-lo e lembra-se da viagem de torno a casa das velhas tias suas protectoras. A mãe, sentada no banco de trás do carro, não disse uma palavra durante o longo percurso. Foi a tia condutora, uma mulher de armas, com buço e empertigação masculinas, que fez a vez da sua progenitora. Falou tanto, resmungou com tal remorso, que o rapaz pura e simplesmente deixou de a ouvir, fechado no destino que doravante iria ser o seu. Estava com dezanove anos. De súbito os estudos técnicos bateram-lhe na cabeça e soltaram o que havia em si de rigor, de matemático, de aturado espírito científico. Pressuroso entrou na faculdade de engenharia, depois de uma hesitação demasiado complexa em abraçar Letras. Para espanto das tias, pois não havia em nenhum ramo da família inclinações literárias e muito menos artísticas. Chegou mesmo a escrever dois livros, um ensaio sobre a problemática do Existencialismo e um romance social passado no Brasil mais propriamente na comunidade Kariri. Para os publicar andou de editor em editor. Depois, cansado de esperar pelas respostas que nunca chegavam, fez como todos os outros escritores e pôs nos escaparates os livros pagos do seu bolso. As obras disseminaram-se pela vasta rede de livrarias e jamais soube quantos exemplares vendeu pois nenhuma delas lhe prestou contas. Não me soube explicar se esse contratempo foi a causa da desistência de uma carreira que afinal nunca fora testada. O que sabe e soube explicar-me num tom calmo e já distante, é que não guarda nenhum rancor ao circuito comercial que não prestou estimativas de vendas. E adiantou que foi por essa altura que travou conhecimento com aquela que é hoje sua mulher. Ambos, pelo que me informou, se encontraram num comício contra o regime e ambos, sendo burgueses e consolados no conforto material, perseguiam um ideal social do equilíbrio humano. O namoro foi curto e consentâneo com os valores professados pelos dois. As tias e a mãe falecida pouco depois, aprovaram o casamento. O tempo seguinte abriu-se como um voo de avestruz, as suas vidas conheceram a subida às alturas e os dois filhos vieram um atrás do outro. Ele acabou engenharia, ela ficara pelo caminho devido à opção da maternidade e às realidades familiares que absorveram a parte reivindicativa e moral do seu pensamento. Num abrir e fechar de olhos, o tempo tinha-se sobrepujado sem que eles se apercebessem. Unidos e apartados pelo ritmo quotidiano que desencadeia doença, perturbação, sofrimento e morte, não se recorda das fases dos filhos nem como chegaram ao estádio actual, amorfos e indiferentes à realidade social e ao empenho solidário que fora o dos pais. A par disso, o silêncio e a monotonia foi-se insinuando entre os dois e hoje a sua vida é uma longa nave à deriva que se encaminha para um porto existente em lugar nenhum. Não sabe dizer se é feliz, porque para ele, a felicidade não existe senão no sentido impreciso do momento e por conseguinte impossível de descrever. Mas o que é capaz de adiantar é que se lhe fosse possível recomeçar do princípio, não trilharia o mesmo caminho. Não tanto porque tenha apreendido com a experiência a vida que tem sido a sua, mas porque a sua natureza, aquela que se expõe e a que se esconde, não é compatível com o organigrama político-social congeminado transversalmente para a humanidade. Hoje, disse, a sua existência cumpre-se sem nenhuma inspiração, absorvida pelo trabalho que os negócios aceleraram e que ele fez questão em não se importar. Pela simples razão, acrescentou entre duas fumaças, “porque não tenho coragem para lhe pôr termo”. Não percebi se se referia a um suicídio, se à simples mudança de vida. Também não quis aprofundar porque, a dada altura, embalado pelo discurso e pela voz que se foi tornando mais quente à medida que a noite avançava, fiquei preso à delicadeza dos seus gestos, ao mistério que cada palavra continha, ao segredo que lhe entupia a garganta e não o deixava confessar o que lhe impedia de gritar. Porque, percebi perfeitamente, era isso que carecia que acontecesse. Um rotundo grito que desse sentido ou mudasse os seus dias. Como uma explosão que de súbito estatela na desgraça a monotonia e deixa na estupefacção as horas seguintes. Quando vi através das cortinas uma subtil luz, quase uma sombra, aparecer sobre as janelas, apercebi-me que o dia ensaiava já o retorno de página. Foi quando, apercebendo-se do tempo que havia corrido sem dar por isso, o meu visitante largou num diálogo que me foi difícil acompanhar.
   “ - Falei tanto de mim e acabei por não saber nada de si.
    - Talvez porque a sua vida teve o suficiente de tempero para se tornar gostosa – disse com um sorriso largo.
    - Oh! Tivesse eu a coragem de lhe contar quantos condimentos fui juntando sem conhecimento para a tornar comestível.
    - De todo o modo, pelo que entendi, coragem não lhe faltou.
    - Coragem! Sabe, sempre tive desconfiança naqueles que se dizem corajosos. A coragem, em muitos casos, é o reverso da recusa em enfrentar as fragilidades. Por isso, prefiro admitir que sou fraco.
    - Um fraco com condimentos fortes – adiantei visivelmente divertido.”
Pela moldura da expressão, vi que não tinha gostado da minha graça. Para aligeirar a atmosfera e trazer mais conforto ao nosso serão, propus-lhe outro café que prontamente aceitou. Quando voltei da cozinha com duas taças e as pousei perto dele, sentei-me no extremo do sofá onde outrora era o teu lugar. Um calafrio percorreu-me a coluna com tal intensidade que julguei ter recebido um jacto de água gélida. A minha mão tremia ao levar a chávena aos lábios. Ele deve-se ter apercebido e disparou:
    “- Parece nervoso. Que tem?
    - Não se preocupe, deve ser cansaço.
    - Tem toda a razão, é quase manhã.
Ia-se a levantar, quando eu acudi:
    - Sente-se. Deixe-se estar, por favor. Eu estou bem – disse tomando-lhe a mão.
Ele apôs sobre a minha a sua e por momentos olhou-me com aquela atenção que eu costumava pôr quando queria sentir o doente para além das suas queixas.  
    - Você é um poço sem fundo – murmurou sem retirar a mão.”
Inexplicavelmente comecei a chorar. As lágrimas corriam-me pelo rosto sem que eu conseguisse sustê-las. Chorava por sentir aquilo que há muito tempo não tinha: ternura, atenção, calor humano. Ele tocou-se a um ponto que, ajustando-me contra si, assim ficou sem uma palavra por largos minutos. Afastámo-nos quando me debrucei sobre a pequena mesa onde tinha deixado o tabuleiro para pegar na chávena de café. Ele fez o mesmo e ambos em simultâneo começámos a beber em golos calmos, o olhar perdido no fundo de um depósito de amarguras que nenhum de nós queria reviver. Acabada a bebida sem que uma palavra tivesse pontuado o momento, ele disse:
     “- Sente-se melhor?”
Sabia que a pergunta era uma forma de cortar o incomodativo vazio e por isso limitei-me a sorrir. Nesse instante ele colocou a sua mão na minha perna em sinal de apoio. Não sei explicar porquê, um estremeção terrível, um susto inopinado, uma espécie de relâmpago cortou-me em dois. Levantei-me num ápice e fui à janela.
    “- É quase dia! – exclamei sem despegar os olhos da rua.
    - É verdade – respondeu ele ao meu ouvido. – Estamos para aqui a lamuriar-nos enquanto a noite deu lugar à manhã. No fundo, pelo que vejo, nem você nem eu fomos feitos para a vida que nos coube.
    - Conhece alguém que tenha traçado o seu destino?
    - Conheço. Todos aqueles e aquelas que se acomodaram a pretexto de tudo menos da liberdade. Eu sou um desses.
    - Talvez a vida seja um acto sem controlo.
    - Em muitos casos, sim. Mas também podemos pôr as coisas noutros termos: é o assassino que escolhe a vítima ou a vítima que escolhe o assassino?
   - Onde quer chegar, não entendo.
   - Muitas vezes o caminho do assassino foi aberto pela vítima.
   - Um pouco como acontece com certas doenças, talvez.
   - Exactamente – disse recolhendo ao sofá para terminar o que restava do uísque.”
Acompanhei-o e sentei-me a seu lado. Não propriamente no lado oposto, mas ao meio junto à mesa de apoio. Sentia-me cansado, abatido pelas longas horas com aquele estranho que desistira dos objectivos que o trouxeram ali. Não posso afirmar que a sua presença me incomodava. Pelo contrário, à medida que a conversa foi decorrendo, sentia-me atraído pela sua personalidade sedutora, pelo seu pensar onde cabia uma ponta de poesia traduzida nas expressões que se foram multiplicando.
    “- Afinal de contas, pode agora dizer-me se é casado? – perguntou de rompante.
    - Já fui – disse a medo. – Duas vezes para ser mais preciso.
    - Recidivo, portanto – acrescentou com gozo.
    - Se quiser, sim.
    - E hoje de que lado se encontra?
    - De nenhum lado. As mulheres deixaram de me interessar. Ou antes, para ser franco, só uma mulher nunca saiu do meu coração: minha mãe.
    - Não posso dizer o mesmo. Como lhe contei a que me coube na lotaria do destino não primou pelo afecto que dizem ser a característica primeira da maternidade. Ainda hoje não compreendo por que me apaixonei pela mulher com quem vivo. Talvez procurasse nela a mãe que não tive. Dizem que há homens assim. Tipos de tal modo exigentes ou idiotas ou egoístas que exturquem daquela que escolheram para companheira a sua própria identidade. Normalmente são pessoas falhas no domínio sexual. A relação afectiva e sensual fica privada do ónus de animalidade que uma mãe não põe num filho, a menos que haja nela alguma tara obsessiva.
    - É tudo muito complicado! Eu ponho em paralelo a felicidade e a liberdade.
    - Duas situações complicadas de definir e muito mais de executar.
    - Talvez. Mas duas forças incrivelmente poderosas capazes de redefinir em permanência o mundo – disse pouco convencido.
    - Ainda há pouco tempo dizia-se que o sexo era o motor da sociedade. Hoje é mais uma forma de alienação como tantas outras que a sociedade foi laboriosamente construindo.
    - O sexo é um refúgio, um lugar de expiação – disse pensando no meu caso.
    - Sem duvida que o sexo possui uma força pouco considerada quando se estudam os comportamentos humanos. Mantém-se uma espécie de tabu que vamos adiando até não podermos mais. Por isso ele foi tão vigiado durante séculos e ainda hoje causa calafrios quando nos expomos. As democracias como as ditaduras utilizaram-no para submeter, reduzir e aniquilar muita gente.
    - É verdade, é verdade.”
Fez-se um grande silêncio. Os primeiros ruídos da rua subiam e entravam na sala. Eram janelas e portas que se abriam, passos lentos nos soalhos de madeira, rodados dos carros passando para lá do arco que unia os dois prédios, uma voz de mulher pendurada na manhã, aqui e ali o cântico de um pássaro que se tinha habituado à confusão da cidade, um rumor impreciso alargado à rua…
    “- Você é curioso – disse ele com indisfarçado interesse.
    - Curioso como assim.
    - Não sei dizer. Há em si algo de misterioso.
    - Tem graça, eu estava a pensar o mesmo de si.
    - A mim faz-me confusão o que leva um homem, digamos, interessante a viver como um monge
    - Talvez a opção, a descrença numa vida feliz acompanhado, a liberdade como valor absoluto, o desespero.
    - Desespero?!
    - Sim. O desespero é da mesma ordem do amor. Um e outro casam-se muito bem e não consta que se apartem facilmente.
    - Nunca tinha pensado nisso. Seja como for, ambos não se alimentam sem o consumo sensual de que o afecto é a base.
    - Para quem é! Você disse há instantes que o sexo era para muita gente uma forma de dependência.
    - Foi você quem o afirmou, penso. “
De facto, com o extremo cansaço de uma noite de vigília, já não sabia o que dizia. O dia soltara-se e tinha invadido toda a casa. Lá fora a vida retomara o seu ritmo e por todo o lado estava instalada a confusão da grande cidade. Como sempre me acontece, os sons chegavam-me coados, amortecidos, filtrados pela fadiga. Nunca soube dizer do prazer que um tal estado de espírito me causa. Gosto de saborear os primeiros acordes da manhã depois de uma noite desabusada ou subtraída ao repouso nesse estado de graça que não consente a entrada violenta dos dianteiros empurrões quotidianos. Fica-me da noite uma impressão sumida, quase irreal, como se os sentidos recusassem reconhecer a vida onde a noite a suspendeu. Ao cérebro chega para descodificar os labirínticos esquemas dos conflitos, o caudal de palavras e silêncios que deram sentido ao desarrumo das horas. Somos alguém que não se reconhece, que não enfrenta os encontrões matinais com os mesmos ímpetos ou a mesma dolorosa inércia. Quando exercia medicina, quantas vezes fiquei sentado num banco de jardim a fazer aquilo que no hospital chamamos o recobro. Necessitava de descansar, sentia-me arrasado, quase desfeito, mas recusava passar de uma situação à outra na urgência que o mecanismo físico carecia.  
    “- O sexo, o sexo! – exclamou ele reclinando-se no sofá. - Sempre o sexo!
    - Não é coisa que me preocupe por aí além – adiantei eu olhando-o de frente.
    - É verdade? – perguntou com um sorriso astuto.
    - Quer dizer não o ignoro, mas não vivo obcecado.
    - Eu tenho períodos – disse voltando a colocar a mão na minha perna e mirando-me maliciosamente. – Às vezes sou acossado por desejos incontroláveis.
    - Espero que não seja o caso agora…”
Rimo-nos ambos. Ele retirou a mão e suspirou. Um suspiro que andou em vibrações por toda a casa.
    “- Isso é grave – disse, divertido.
    - Não brinque com coisas sérias. Os sentimentos são instantâneos que podem ficar adormecidos anos a fio e depois, um dia, sem nós contarmos, sobem à superfície misturados na fúria dos desejos.
    - Compreendo.
    - Não compreende. Não sabe do que falo.
    - Talvez saiba, mas não quero saber.
    - Você tem um jeito de ser que força à confidência. Senti isso quando lhe telefonei.
    - Deve ser da sua profissão. Um engenheiro é alguém com inclinações rigorosas face aos problemas.
    - Não pode ser doutro modo, não é.
    - Talvez. Embora se deva dizer também de todas as profissões. Repare na medicina. Um erro por distracção pode levar à morte.
    - Tem razão. Veja o que é a conversa. Começámos por falar de sexo e já vamos na morte.
    - Provavelmente porque o sexo é hoje a primeira porta de entrada na morte.  
    - Não seja tão trágico! O sexo é maravilhoso mesmo nos aspectos mais sórdidos. Atrás dele esconde-se não só toda a gama de situações, mas igualmente um leque impressionante de liberdades. Eu, embora tenha sido fiel à minha mulher, dou comigo muitas vezes a viver outras vidas. Sobretudo a seguir ao nascimento dos meus filhos.
    “- Que quer dizer?
    - Quando os meus filhos ficaram, como dizer, independentes fechou-se um ciclo. Senti isso entre mim e a minha mulher, entre mim e o mundo exterior que me cerca no dia-a-dia. Parece que fiquei de repente mais lúcido, mais atento à diversidade de vidas. Pior: experimentei a impressão de não ter vivido plenamente. Falta-me qualquer coisa. Sinto que me entreguei anos a fio a uma vida demasiado espartilhada: família, trabalho, obrigações de ordem vária. Um colete que me foi estrangulando, ao ponto de quase me sufocar. É horrível!”
Vi-o inclinar-se para a frente, as mãos amparando a cabeça, os cotovelos apoiados nos joelhos. Senti compaixão e quis fazer um gesto que lhe aliviasse o tormento. Mas limitei-me a olhá-lo hirto, vendo-o sofrer dobrado sobre si próprio, o suor brilhando-lhe na testa e misturando-se com a madeixa de cabelo claro. O cigarro tremia-lhe entre os dedos finos. Parecia um adolescente crescido que carecia de um beijo, de um afago. Optei pela palavra que acho sempre mais oportuna e benfazeja.
    “- Nunca é tarde para chamarmos a felicidade.
    - Não digo o contrário. Ainda há instantes a abordei, mas ela não acudiu ao meu chamamento…
Fingi não entender e prossegui:
    - Sei exactamente o que sente. Eu sou muitas vezes tocado pelos mesmos presságios.
    - Não parece – afirmou levando na voz as palavras para longe.”
Nesse momento ouvi a campainha da porta. Cheguei à varanda e vi em baixo o carteiro que me acenou com um pacote.
    “- Vou recolher o correio – disse-lhe aproximando-me da saída.
    - Aproveito e saio também.
    - Fique. Não me demoro.
    - Agradeço. Mas tenho a minha mulher certamente inquieta.”
Desci na sua frente e à entrada do prédio recebi de um rapaz que não era usual fazer a minha área um volume remetido por um laboratório. Quando me voltei para chamar o elevador, ia o meu visitante a sair.
    “- Agradeço-lhe a noite. Não quero alimentar ilusões e por isso lhe digo adeus.
    - Ilusões? Que quer dizer?
   - Esqueça.
Estreitou-me nos braços e ficou junto a mim por um tempo que me pareceu uma eternidade. Depois, já na rua, desabafou:
    - Há muito tempo que não me sentia alguém. Graças a si estive próximo de algo que não ouso pronunciar o seu nome. Infelizmente agora é demasiado tarde para o realizar. Tchau.”