terça-feira, maio 03, 2016

Terça, 3.
Nesta altura do ano, depois de um inverno rigoroso, persistente e chato, antes da chegada do Verão que cansa, adormece, arrasta sinto como uma recompensa imerecida estes dias claros, sossegados, quentes sem queimarem, afagados de memórias felizes sob as sombras protectoras das milenárias figueiras. As leituras que antecedem uma curta sesta, acontecem lá fora, debaixo do telheiro, com o horizonte atapetado do verde infinito das árvores, o canto alegre do cuco, o barulho quedo do silêncio passeando em redor da quinta afagada pelo sol. A casa no seu deslumbre fascinante, conserva a frescura da Primavera que pede licença para se instalar. Em breve ela vai demorar-se entre muros oferecendo o contraste da protecção contra o ímpeto do astro-rei nos trópicos abafados. É então nela que se queda o seu ocupante, entre livros soltos pelos quatro cantos, a salmodiar as preces que derramam os in-fólios do alto das estantes. São vozes que ciciam, questionam, intimam fazendo entrar no salão as discórdias, o filosofar arrebatado, arrastando as ideias e os pensamentos que transformam a vida e fazem dela um elemento rico da matéria orgânica que o alimenta. A fresquidão que abraça a atmosfera, tem o mesmo afago da lareira acesa nas noites tempestuosas e frias do Inverno. Ambas traduzem no rumor que enche o silêncio uma espécie de ladainha consubstancial a algo indizível, contudo eternamente jovem, projectado no futuro que remonta a cada instante da recordação, enriquecendo-a com as partículas de oxigénio que só o isolamento desejado pode fornecer. O corpo ambienta-se, vai calmo de sala em sala, os olhos fixam uma tela aqui, uma sombra acolá, as portadas entreabertas deixam entrar a luz filtrada que paralisa os sentidos, recorta a beleza da canção ondulante que a Primavera no seu hausto deixa a pairar no ar puro da manhã. No sossego dos dias, sucedem-se noites claras onde estrelas vagabundas passeiam com nitidez e deslumbre os signos que nos arriscam desgraças e venturas. Aqui ninguém morre abandonado. Somos um todo no universo singelo dos dias recheados da riqueza do silêncio abarrotado de vozes e felicidade.