terça-feira, maio 24, 2016

Terça, 24.
Uma série de atentados ferozes na Síria perpetrados pelo Daesh, vêm provar que a organização está viva e não se intimida com os bombardeamentos russos, americanos e europeus. Cento e trinta e nove pessoas foram mortas.

         - Na viagem que fiz a Badajoz, fui comigo mesmo, quero dizer mergulhado em pensamentos como é habitual quando conduzo horas seguidas. Em consequência, aconteceram dois factos dignos de registo. O primeiro, tendo feito toda a chamada recta de Pegões, vi-me de súbito de novo no Montijo e foi necessário tornar a percorrê-la na direcção de Vendas Novas. Como isto aconteceu, não me perguntem. O segundo, tendo levado a caixa dos comprimidos para o Black, ao entrar numa farmácia já em Espanha, dei-me conta que não a tinha comigo. Ao fim da tarde, quando me dirigia ao carro, atravessei uma passadeira para piões e que vejo eu no chão... a embalagem.

         - Provavelmente devido ao filtro do ar condicionado demasiado sujo, estou hoje uma tristeza de gente. Apanhei uma alergia de tal modo insuportável, que me é difícil tolerar a tosse, o nariz e os olhos sempre a pingar, a cabeça pesada. Devia ter seguido esta manhã para as Caldas da Rainha onde me esperava a Alice, mas no estado calamitoso em que me encontro, só quero descanso e sopas quentes. Mesmo assim, arrastado, fui ao fundo da quinta queimar a derradeira pilha de resíduos vegetais. Pode agora o homem vir gradar a terra.

         - Dito isto, a atmosfera abafada em Badajoz, o calor que queimava, também devem ter feito estragos num organismo habitualmente robusto. Andei muitas horas ao sol no centro da cidade onde o bulício é sempre um convite à dança. Corpos fabulosos, rostos sorridentes por todo o lado a fazer comichão nos sentidos. Felizmente que já pus trancas na porta do desassossego. Bom. À parte isso, foi um prazer veranear por aquelas ruas que a partir das duas da tarde adormecem à sombra das árvores. Com as lojas cerradas, os seus habitantes a dormir uma sesta que se prolonga até às cinco e meia, o que encontramos são esplanadas e bares, a abarrotar de espanhóis a bebericar cerveja e a comer bocadillos debaixo dos toldos avançados para os passeios. Tentei almoçar no restaurante onde tantas vezes comi com os A., mas verifiquei que os velhotes seus donos, abandonaram o barco entregando-o a uma espécie de sala de jogos. Em Espanha, à parte as pequenas bodegas familiares de bairro ou os grandes restaurantes, come-se mal. Por isso, foi para mastigar qualquer coisa que entrei num desses recintos barulhentos que alinham mesas como se fossem cantinas. Na frente a sempre omnipresente televisão, exibindo programas reles, eróticos, a que ninguém presta atenção.


         - A bem dizer, este adormecimento, esta languidez que tomou conta do meu corpo e do meu espírito, sinto-a como qualquer coisa benfazeja. Como normalmente ando spedado, esta espécie de sedação transporta-me a um estado puro de levitação. Estou nas alturas de uma forma de vida onde todos os acontecimentos, pequenos ou grandes, se ajustam ao ser que eu sou e sobre o qual paira uma fabulosa serenidade, próxima do estado de graça. As palavras que se reúnem no meu cérebro, não se atropelam quando descem à página. Os intervalos para pensar, são longos e projectam-se para além do espaço verdejante encostando-se à linha do horizonte visível como uma reverberação imaterial. A caixa cerebral parece estar retira num fluxo concêntrico. A própria noção do tempo, ficou travada como se o meu corpo tivesse deixado de se importar com o ritmo constante que o tempo utiliza para ser tempo. Mexo-me parado. O zumbido nos ouvidos ajuda a fechar-me num casulo oco que me mantém concentrado no vazio. A atmosfera que está lá fora onde a chuva parou de cair, deixou de existir porque todo o meu corpo está compactado dentro de si. A casa é para mim, enfim, a casa. Pertenço-lhe como espaço físico que me cerca do prazer de existir para mim. Vou desejar vivê-la enquanto estiver como estou. Não tenho a mínima apetência para ir ao café, para ir ver quem anda a passear na cidade sob chuva miudinha. Até os objectos – livros, quadros, mesas, estantes, máquinas, toda a parafernália que entulha os espaços – me olha do fundo de uma quietude que eu desconhecia. Se esta obscenidade de situação se prolongar, não vou rogar à saúde que se reconstitua contra sua vontade. As coisas são o que são. O corpo é uma máquina perfeita que aspira a morrer. O descanso eterno é o prémio para uma vida activa norteada pelos solavancos das alegrias e tristezas. É tudo? Não. Estou com um nariz de palhaço de tanto me assoar.