segunda-feira, maio 11, 2015

Segunda, 11.

Eu sempre vivi em cidades. Sou nascido e criado dentro dos seus muros, mas com um olho posto na beleza que a Natureza oferece às almas sensíveis que lhe reconhecem o timbre límpido do silêncio, os aromas, a luz das estações, a frescura das manhãs cuja claridade obscurece e aninha de paz os seres solitários, abençoados pela magia da solidão e da liberdade desbragadas, capazes de reconhecer os sinais que apaziguam, remetem para a eterna e benéfica interrogação que vem no lento desfiar das horas, e mais não é que o confronto que nos espera chegado momento do ajuste e do saldo final de uma vida. Cada estação apresenta-se com a sua personalidade própria, logo reconhecida e aceite por todos quantos não necessitam da bengala muitas vezes fraudulenta da estirpe, da falsa companhia, do murmúrio familiar que se insinua no acomodamento quotidiano que trabalha o bocejo, a tristeza, o desamparo moral, a monotonia, o ódio e o vício, dois companheiros inseparáveis que forjam o carácter e o inundam de desespero e alienação. A solidão, a verdadeira, é uma bênção. Sempre assim pensei e mesmo quando vivi acoitado em alguém, tive perpetuamente precisão de me recolher por largas horas à sua sombra protectora. Porque há nela, nessa solidão sagrada, a dignidade que faz do solitário um ser imenso, capaz de transportar consigo o mundo inteiro, não obstante a aparente fragilidade que não o desmerece antes o dignifica e engrandece. Quem escolheu viver só, tem uma apuradíssima noção do tempo. Digamos que o tempo é a sua companhia fiel a par da liberdade e das sonoridades que vêm no fio translúcido das horas. Aqui, por exemplo, quando o Verão se instala, tudo toma a acuidade finíssima que faz o milagre dos sentidos transbordarem de emoções fortes, de remoinhos de prazer, de alegrias breves, de momentos literalmente cobertos da paz que sente o ciciar das folhas, o diálogo dos pássaros, os primeiros acordes dos grilos, o coaxar das osgas, o rastejar das cobras. Explode-se de felicidade. Porque tudo nos toca, nos fricciona, nos interroga, nos eleva aos píncaros do mistério que existe na harmonia e na comunhão que nos une a tudo o que nos cerca, fazendo-nos parte do universo que os nossos olhos ao acordar de manhã admiram ainda sonâmbulos, mas já tocados pela pujança, força, dinamismo que o dia luminoso nos entrega. Pelo adiantado da tarde, são as sombras que entram sub-repticiamente em casa, passeando de divisão em divisão, como presenças secretas que acariciam os quadros, as lombadas dos livros, e tudo o que aqui existe para meu gozo e deleite. Com elas entra também um silêncio suave, que nada tem a ver com aquele outro que o Inverno traz. Este é mais leve, quase uma voz tangente à tarde abafada que rememora tempos idos, quando as horas se espreguiçavam sob figueiras de largas abas, e um sossego rasante percorria a pele num arrepio de ternura e quietude. Se acontece olhar lá para fora, para o espaço cheio de sol oblíquo, através dos rectângulos dos vidros da janela, vejo as árvores quedas, pensativas, dialogando entre si, roçadas por uma leve brisa que as humaniza aos meus olhos maravilhados. Quando fecho as portadas, entro num mundo que aprisiona o tempo, sem passado nem futuro, apenas o presente vivido na sagração íntima que projecta a solidão numa amplidão de liberdade soçobrada além de mim, nesse largo horizonte onde poucos têm acesso porque simplesmente não possuem o código da intimidade profunda consigo próprios.