quinta-feira, maio 21, 2015

Quinta, 21.
Há duas semanas numa manhã cedo já abafada, acordei pelas sete horas e depois do pequeno-almoço meti ombros às regas. Findas estas, sem que tivesse programado, respondendo simplesmente a um apelo íntimo, desses que só as mulheres e os homens livres sabem o que é, um murmúrio que rói, liberta, solta o espírito, incendeia o desejo, transpõe para o imediato a elegia libertadora dos livres, dos sós, dos que estão consigo mesmos nesse limbo de disponibilidade onde a liberdade é sacrossanta, não consente que o outro o maniete, se lhe oponha com questões e perguntas de ordem policial, o programe na servitude dos afectos que o amarram, o tolhem antes da tartamudez, os medos, a periclitante aventura que ele desconhece, confiante na ascensão dos sentidos e na imprevisibilidade das horas, numa manhã assim fechei a casa, meti-me no carro e viajei para Espanha.

         - Fui pela estrada velha minha conhecida de outras aventuras, fugindo das portagens que já pago com língua de fora com as famosas PPPs, tendo por companhia a Antena 2 e o meu amigo António Carmo que era o convidado do dia a propósito de uma nova exposição e que esta manhã saudei pela excelente prestação que deu a Arte e à Cultura. Normalmente os pintores são pouco dotados de palavra. O caso do António, que sempre viveu no meio cultural e artístico, conheceu este mundo e o outro, pode passar uma hora interessantíssima a falar de escritores e artistas com quem conviveu. E fá-lo com uma desenvoltura que me fascinou a par, evidentemente, da sua imensa obra pictural que não pára e o obriga pela força do muito que quer transmitir a prosseguir. Disso já falámos. Enquanto outros desistem abatidos pela crise ou puramente por lassidão que não obtém da concessão remissão, a ele nunca faltaram galerias nacionais e internacionais. Pelo contrário, ouvindo o que o espera para este ano, é impressionante o trabalho que tem pela frente. Ele que noutra ocasião me dizia que até podia deixar de trabalhar porque possui um pé de meia suficiente para isso (o montante impressionou-me). “Nunca fui gastador. Venho aqui à brasileira todos os dias tomar a bica e depois abalo para casa ou para o atelier. Sempre fui uma pessoa económica.”


         - À chegada a Badajoz perdi-me como me perco (e ainda bem) sempre. Quero ir à loja onde costumo comprar os produtos anuais para a piscina, mas o olfato persegue os aromas que voltejam no ar, orienta-se para ruas e janelas, sótãos e varandas com toldos verdes corridos, e eu vou por ali fora procurando no murmúrio quedo da tarde algo que sei que existe, mas não acho: um felling esquecido, uma voz rouca submersa na recordação, um corpo a transpirar de cio, um olhar pasmado com uns olhos a abrasar de comichão, um levíssimo assomo que quase desmaia quando um passo em falso nos aproxima do precipício... Assim que encontro, enfim, o Guadiana e o atravesso para o outro lado onde a cidade se estende como uma lagartixa ao sol quente das duas da tarde, sou abraçado por um bafo de alegria e ligeireza que dentro das lojas e restaurantes, nas ruas sombrias com esplanadas rentes aos prédios, nos prende. Almocei num restaurante quase deserto, com climatização, onde comi muito bem e com mil atenções do empregado barrigudo e expressivo, um olhar nos clientes outro no aparelho de televisão preso ao cogote do tecto, onde uns rapazinhos formatos faziam banalidades, expondo os corpos musculados, iguais a milhões, de uma insuportável vulgaridade, que adolescentes ocas aplaudiam e os apresentadores aproveitavam ao toque o que havia de volume. Meio tonto, quando depois enfrentei o sol tórrido, dentro do carro com o ar condicionado no máximo, procurei sem perguntar, seguindo os sentidos, a intuição, no íntimo não desejando nunca encontrar, o lugar onde acabei por adquirir a um preço três vezes inferior o artigo que me levou à aventura. Não voltei logo. Apetecia-me perder-me por ali assim que a tarde começou a arrefecer e as toupeiras invadiram as praças, os centros comerciais, os cafés e cervejarias. Uma algraviada corria ondulante por todo o lado, as ruas eram cruzadas por gente em calções, meia despida, em andamento tergiversante, desafiando os olhares e os apetites, as sensações e aquele quê que se imiscui em nós e nos paralisa ante a beleza cujo reino por vezes não pensamos poder estar ao alcance de um estalo de dedos, de um assobio, de uma tentação lançada à revelia das aparências...