quinta-feira, abril 30, 2015

Quinta, 30.
Estou quase no fim do Mais la musique soudain s´est tue. Não tem a grandeza nem a profundidade do anterior volume Carnets Noirs. Saio todos os dias de rastos da leitura de um diário que conta obsessivamente e com compreensão o fim de um homem diletante que apostou a carreira de escritor e de homem sensual, na projecção de valores nitidamente  eróticos para não dizer pornográficos, embora ele sempre tenha falado da grandeza sentimental e amorosa subjacente. É verdade que Matzneff diz sofrer com a perda de um passado de Dom Juan, quando as adolescentes e os rapazes de quinze anos vinham a correr do liceu para a sua cama, mas também é verdade que não precisamos enquanto leitores de descer aos pormenores que um casal tem na intimidade do seu quarto, até porque mutatis mutandis, a coisa não varia nada. Não sou puritano, odeio a moral batizada nas águas turvas da fé arredondada de cinismo, mas não me interessa saber como acontece aquilo que o diarista chama o crac-crac-zim-boum entre um homem e uma mulher. Nas 517 páginas quase não há uma que não fale disso, pese, todavia, o facto de o escritor estar com 76 anos, cancro de próstata, e quatro mulheres a entrar e sair do seu minúsculo apartamento não com a frequência de outros tempos, em número de amantes e acção prática, mas ainda assim, a fazer crédito ao que ele conta, bastante acelerado. Como se Gabriel Matzneff não fosse mais do que aquele desassossego de pobre exibicionista. Há nos seus ensaios uma cultura clássica consistente, um delírio na escrita e no pensamento, um francês iluminado que nos transporta aos cumes da arte e da evocação. Os seus Diários são um faits divers onde ele tem necessidade de se expor, de fazer querer que a sua sensualidade é testemunho e condição de inveja nos seus pares. É também de algum modo, a arma que usa contra os que não apreciam a sua escrita e o seu pensamento. Um Matzneff em Portugal era impossível. Somos demasiado limitados de massa cinzenta, vivemos nos esconderijos das mentes pequenas, salvaguardadas por uma moral cristã que fez carreira montada na ridícula obsessão do pecado carnal. Mas (interrompido)

         - Na República Centro-Africana onde as tropas francesas chegaram supostamente para defender as populações, sucedem-se as violações a raparigas nativas. Estas, em acampamentos monstruosos junto ao aeroporto da capital, dirigem-se aos soldados, esfomeadas, pedindo-lhes comida. A resposta é invariavelmente a mesma: só depois de fazermos sexo.


         - Comecei a aparar o relvado em torno da casa com o corta-relva, alternando com a roçadeira no jardim por ser mais pesada e cansativa de manejar. Um dia com um, outro dia com outra, ora num sítio, ora noutro. Nesta altura do ano o trabalho aqui não me dá um dia de descanso. Amanhã deverá vir o homem do tractor gradar o terreno. Na próxima semana o técnico da piscina. Depois montarei o lounge e assobiarei ao Verão que se apresente. Esta manhã muito cedo com a Piedade, plantámos curgetes e abóboras. Já tenho os primeiros morangos vermelhos, em breve estão prontos para os comer. Os figos têm o tamanho de uma noz. Os alperces também. As pereiras do Oeste que plantei há duas semanas, exibem um minúsculo bebé bem formado. As macieiras fizeram ronha este ano ou esqueceram-se de acordar. São os ciclos sacrossantos da Natureza. Que não espera pela nossa paciência ou procrastinação. Em certo sentido, ela desafia a nossa indolência e mandriice. Aleluia!