Quarta,
15.
A
minha mesa de trabalho parece a banca de uma tipografia, com pelo menos um
milhar e meio de folhas de papel empilhadas por todo o lado. A Piedade está
proibida de limpar o pó, arrumar seja o que for há duas semanas. Eu vou
desbravando esta floresta de papel como posso, perdido nas muitas versões do
romance tendo, enfim, ontem organizado o primeiro dossier com as transladações
apuradas corrigidas à mão. A ver vamos o que se segue, afastada já a depressão
que quase me levou a destruir tudo, quero dizer, dois anos e meio de trabalho
quotidiano.
- Tempo moche, moche. Bom, todavia, para as plantações que efectuei
anteontem. Aproveitando a frescura da tarde, comecei a roçar a erva daninha que
foi crescendo à volta da casa. Não tenho pressa, faço o que posso e a mais não
sou obrigado. Desde sempre fui um corredor de fundo e interiorizei a ideia que
a vida foi a que me calhou viver, retirando eu o melhor que a encheu, que a
enche. Tenho dias que basta-me olhar a pilha de livros que me aguardam para ler
sobre a mesa baixa em frente à lareira para ser feliz. No fundo somos feitos de
uma misteriosa unidade, um equilíbrio instável, que nem por isso deixa de
produzir em nós a realização que nos dignifica e nos defende dos fantasmas que
habitam connosco e das acritudes do mundo.
- Sartre: Antes da liberdade, o mundo é um todo que é aquilo que é, uma grande
massa indiferenciada. Depois da liberdade, há coisas diferenciadas, porque a liberdade introduziu a negação. Bem observado.
- Enquanto a tarde flutuava e os
afazeres, digamos, literários tinham os seus tempos suspensos, fui duas ou três
vezes lá fora admirar a beleza da erva transformada num tapete de campo de golfe.
Cumprimentei-me pelo trabalho realizado e senti até uma ponta de orgulho no
facto de heroicamente manter este espaço habitável e por conseguinte
consentâneo com uma certa ideia de deslumbre que anima os afectos e traduz a presciência
abstracta num lugar de salvação.
- Há um fenómeno que há séculos não se
registava e nem sei mesmo se algum dia aconteceu: o grande capital pagar para
emprestar dinheiro aos países miseráveis ou endividados. Pois é, mas é isso que
ocorre neste momento, baralhando todos os ensinamentos aos nossos brilhantes
economistas. Nem Adam Smith imaginou coisa semelhante! Interroga-se o sovina:
“como é possível”! Responde-lhe o invejoso: “deixa estar que eles não perdem
dinheiro”. E de facto. Os capitalistas, uma vez a essa condição chegados, quase
sempre devido à exploração e à corrupção, mesmo analfabetos, sabem somar e
multiplicar e chegaram à conclusão que é mais seguro apostar num qualquer país
que na Bolsa ou num negócio de rapina.
- Se mantenho este diário, não é tanto
para nele registar o desassossego do mundo, nem tão-pouco como espelho de mim
próprio ou da litania entediante da oratória dos políticos. Faço-o como treino
de escrita, campo de experiências, ao jeito do desportista que todos os dias
sabe que tem de treinar para não perder a destreza. O simbólico é muitas vezes
aqui substituído pelo real. Sartre dizia que “o homem é um ser que se esquiva
para o futuro”. Talvez haja disso em mim, na medida em que o futuro só existirá
se existir o presente. Parece paradoxal, mas não é. Projeto-me aqui e agora e o
registo de mim e dos acontecimentos são o presente hoje sem deixarem de ser o
futuro amanhã. Curiosamente – alguns leitores fazem-me chegar o reparo – não
falo muito de mim. É verdade que por natureza sou reservado. Isso não quer
dizer porém, que tenha de expor aquilo que é intrínseco àquele outro que
coabita comigo e cuja verdadeira essência nem eu conheço. Revelar todo o
mistério é resvalar num precipício de consequências imprevisíveis. Há como que
uma desintegração do ser enquanto integridade. Talvez este diário seja a
história de um homem e de um tempo passado pelo crivo de uma identidade ávida
por se esconder. Falo de esconder e não de disfarçar.