quarta-feira, abril 15, 2015

Quarta, 15.
A minha mesa de trabalho parece a banca de uma tipografia, com pelo menos um milhar e meio de folhas de papel empilhadas por todo o lado. A Piedade está proibida de limpar o pó, arrumar seja o que for há duas semanas. Eu vou desbravando esta floresta de papel como posso, perdido nas muitas versões do romance tendo, enfim, ontem organizado o primeiro dossier com as transladações apuradas corrigidas à mão. A ver vamos o que se segue, afastada já a depressão que quase me levou a destruir tudo, quero dizer, dois anos e meio de trabalho quotidiano.  

         - Tempo moche, moche. Bom, todavia, para as plantações que efectuei anteontem. Aproveitando a frescura da tarde, comecei a roçar a erva daninha que foi crescendo à volta da casa. Não tenho pressa, faço o que posso e a mais não sou obrigado. Desde sempre fui um corredor de fundo e interiorizei a ideia que a vida foi a que me calhou viver, retirando eu o melhor que a encheu, que a enche. Tenho dias que basta-me olhar a pilha de livros que me aguardam para ler sobre a mesa baixa em frente à lareira para ser feliz. No fundo somos feitos de uma misteriosa unidade, um equilíbrio instável, que nem por isso deixa de produzir em nós a realização que nos dignifica e nos defende dos fantasmas que habitam connosco e das acritudes do mundo.

         - Sartre: Antes da liberdade, o mundo é um todo que é aquilo que é, uma grande massa indiferenciada. Depois da liberdade, há coisas diferenciadas, porque a liberdade introduziu a negação. Bem observado.

         - Enquanto a tarde flutuava e os afazeres, digamos, literários tinham os seus tempos suspensos, fui duas ou três vezes lá fora admirar a beleza da erva transformada num tapete de campo de golfe. Cumprimentei-me pelo trabalho realizado e senti até uma ponta de orgulho no facto de heroicamente manter este espaço habitável e por conseguinte consentâneo com uma certa ideia de deslumbre que anima os afectos e traduz a presciência abstracta num lugar de salvação.   

         - Há um fenómeno que há séculos não se registava e nem sei mesmo se algum dia aconteceu: o grande capital pagar para emprestar dinheiro aos países miseráveis ou endividados. Pois é, mas é isso que ocorre neste momento, baralhando todos os ensinamentos aos nossos brilhantes economistas. Nem Adam Smith imaginou coisa semelhante! Interroga-se o sovina: “como é possível”! Responde-lhe o invejoso: “deixa estar que eles não perdem dinheiro”. E de facto. Os capitalistas, uma vez a essa condição chegados, quase sempre devido à exploração e à corrupção, mesmo analfabetos, sabem somar e multiplicar e chegaram à conclusão que é mais seguro apostar num qualquer país que na Bolsa ou num negócio de rapina.

         - Se mantenho este diário, não é tanto para nele registar o desassossego do mundo, nem tão-pouco como espelho de mim próprio ou da litania entediante da oratória dos políticos. Faço-o como treino de escrita, campo de experiências, ao jeito do desportista que todos os dias sabe que tem de treinar para não perder a destreza. O simbólico é muitas vezes aqui substituído pelo real. Sartre dizia que “o homem é um ser que se esquiva para o futuro”. Talvez haja disso em mim, na medida em que o futuro só existirá se existir o presente. Parece paradoxal, mas não é. Projeto-me aqui e agora e o registo de mim e dos acontecimentos são o presente hoje sem deixarem de ser o futuro amanhã. Curiosamente – alguns leitores fazem-me chegar o reparo – não falo muito de mim. É verdade que por natureza sou reservado. Isso não quer dizer porém, que tenha de expor aquilo que é intrínseco àquele outro que coabita comigo e cuja verdadeira essência nem eu conheço. Revelar todo o mistério é resvalar num precipício de consequências imprevisíveis. Há como que uma desintegração do ser enquanto integridade. Talvez este diário seja a história de um homem e de um tempo passado pelo crivo de uma identidade ávida por se esconder. Falo de esconder e não de disfarçar.